sábado, 11 de setembro de 2010

A morte e a morte do bom senso

Todos os dias, às 8:30 da manhã, o velho começava o dia em frente a estátua do Tiradentes. Para quem já o conhecia, não havia muitas surpresas. Quinze minutos antes, o velho despontava na esquina da Assembléia com a Primeiro de Março. Andando devagar, arrastando os pés cobertos de trapos, o velho avançava de cabeça baixa, curvado pelo volume grande de placas, papéis e sacos que carregava nas costas, pesado pelas dezenas de latas e garrafas presas ao seu cinto esfolado.

A pele curtida de sol acusava um ex-praiano. Os cabelos brancos e longos denunciavam os setenta e muitos anos, as mãos grossas não diziam nada, pois não se sabia há quanto tempo aquele velho andava perdido pelas ruas, nem qual havia sido seu ofício. O que se sabia, com certeza, era que a pontualidade estava sempre diante dele e o silêncio o acompanhava aonde quer que fosse.

As lendas da cidade geralmente nascidas em lugar nenhum e fortes como um sudoeste, já haviam adotado a estranha figura. Nos becos da cidade velha, diziam que já teve carros, casa, mulher e filhos. Nos puteiros mínimos e nas zonas vermelhas, seguiam firmes as famas de bom amante e ótimo bebedor. No porto, entre caixas e contêineres, se escutava que havia perdido tudo no jogo. Das rodas de samba e das gafieiras,a história dizia que ele tinha sido vítima de uma trama sórdida elaborada por falsos amigos.  

Ignorando os ventos, o velho, com a calma dos que já passaram, montava todos os dias sua cadeira de praia listrada de azul e branco. Sentado e relaxado, começava a armar sua tenda. Os que tiveram coragem de se aproximar perceberam que aqueles papéis que carregava não eram um lixo qualquer, mas sim galhardetes, faixas, fotos gigantes e  placas de campanhas políticas do passado. Dentro daquele mar de rostos e promessas, o velho respirava fundo e começava a montar seu teto.

Quando não chovia ou não havia o incômodo de passeatas e manifestações vazias, a tenda do velho surgia perfeitamente montada às nove da manhã. Satisfeito, o senhor esticava as pernas e guardava silêncio, embalado pelo barulho dos carros que guerreavam na sua frente. Aos que passavam, nada. Os olhos cansados miravam o infinito que, por vezes, terminava na lataria de um ônibus enguiçado.

Na frente da pequena cabana de papel, oscilando sobre a cabeça branca do dono, um grande cartaz de letras roubadas gritava aos cariocas a mensagem que o velho insistia em transmitir: “O bom senso está morto”. Nunca ninguém perguntou a ele o que queria dizer nem o porquê. Era um enigma de fácil resolução mas de difícil acesso. Pelo menos é o que pensavam aqueles que paravam para atravessar a rua e davam com aquele cenário. “Vai que o velho é maluco e tem uma arma”.

Mas ele não tinha, nem nunca tivera.

Por dez anos, ele repetiu o mesmo ritual. Por dez anos ninguém deu-lhe a mínima atenção. Na última semana, um carro desgovernado por um bêbado atingiu o velho e com ele, sua casa de promessas e rostos. O cidadão trôpego, que era deputado de reputação lustrosa, foi solto no mesmo dia. O velho, bem, o velho morreu, assim como o bom senso. No dia seguinte, saiu no jornal que o defunto era cabo eleitoral de candidatos da oposição da assembléia e que estava ali para causar desconforto.

Não, essa versão nunca foi aceita pelos becos, puteiros e rodas de samba. Não sabiam por que o velho estava ali, mas sabiam os motivos pelos quais não estava.

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