sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Recheio

Se me perguntassem, eu diria que cada um faz suas próprias escolhas.
E precisa gostar disso. Todo dia.
E daí? Se querem saber o nosso background...
O nosso métier.

A intenção reina. Absoluta. Hoje.
Até a forma tem que ter recheio.
O gesto. O tom. O semblante. O som.
Tudo casca.

Querer é querer.
Fazer é fazer.
Querer fazer é o melhor começo.

domingo, 28 de agosto de 2011

Aos domingos

Hoje, acordei com uma imensa vontade
de libertar, a cada afirmação captada,
um foda-se lindo, robusto e de qualidade

Não sem antes, estupefato, fazer uma cara
convincente de quem desarma o coração
com teatral empolgação escancarada.

De olhos abertos, esbugalhados em atenção,
ouvirei palavras jorradas aos milhares,
nadas delicados, verdades por uso capião.

Com lágrimas nos olhos, crepusculares,
encherei o peito com o ar limpo dos impuros
e o foda-se sairá, alforriado,
com sons espetaculares.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Culpa universal


Se andasse tudo o que pensa, teria dado a volta ao mundo. Da última vez que abriu a boca para filosofar sobre coisas sem sentido, e digo por minha parte já que deve ter aberto a boca para outros mais recentemente, discursou sobre o impacto e sobre a solidão de se saber parte do tempo. Incrível a capacidade de abstração para alguém que claramente tem mais o que fazer. Disse que se sentia incomodado em saber que ao mesmo tempo em que lia, candidamente, um livro, alguém, em outra parte do mundo, certamente estaria morrendo, sendo morto, nascendo, comendo e, o pior, fazendo amor. Para ele era insuportável a consciência de ser apenas parte de um sistema que não poderá jamais conhecer por completo.

A culpa de ver-se lendo um livro enquanto alguém morria de inanição pesava sobre seus ombros, mesmo que obviamente não houvesse sentido algum tal premissa. Disse mais, sempre que pensava no assunto, projetava situações que estariam, quase certamente, ocorrendo em outras terras. Em comum entre as imagens de prisões, desertos, guerras e camas desarrumadas, apenas o seu rosto. Era ele que tomava um tiro de um soldado chinês, era ele que amava uma japonesa de cara embaçada – característica recorrente em sonhos e pensamentos, era ele que socava a mesa em uma empresa recém-falida qualquer, era ele, sempre ele que sofria todas as dores e alegrias do mundo.

Ouvi até o final toda essa história e cai em desânimo por não ter uma resposta melhor do que uma interjeição qualquer para dar ponto final à conversa. Mesmo que blindado à loucura do livro como arma letal indireta, porém definitivamente tomadora do tempo em que poderia estar-se fazendo algo mais útil do que deitar-se a viajar em ficções e contos surreais, agora, sempre que começo minha leitura noturna, sinto uma pontada de culpa no estômago. Me salva de sofrer com a questão a infame ideia de que enquanto sofro de culpa, por menor que seja, alguém está lendo, candidamente, um livro qualquer.

sábado, 23 de outubro de 2010

O vinho e a morte

A mulher das mãos falantes foi almoçar na casa de uns amigos franceses nos arredores de Paris. A casa branca era pequena, mas formosa. No grande jardim de flores amarelas, a família montou uma longa mesa, cercada por oito cadeiras de palha. Entre garrafas de vinho da safra de 1968 e caramujos da terra, via-se uma esplêndida toalha branca de rendas da Ilha da Madeira. O sol agradável e o cheiro de jasmim completavam o cenário.

As roupas brancas e simples da família engoliram as cores e dobras das apresentadas pela turista convidada. Brasileira e colorida, a mulher das mãos falantes se esforçou para acompanhar o alvoroço que o vinho francês causava e, como era boa com a fala das mãos, acompanhou atentamente as mãos dos outros. Se comunicou, bebeu e até se arriscou com os caramujos afogados no melhor molho da culinária francesa.

No auge do encontro, quando nada era francês e nada português. Alguém da porta da cozinha gritou: "un mort". A família imediatamente se levantou da mesa com precisão, como num ato ensaiado, e desapareceu dentro da pequena casa. A convidada, paralisada, foi informada por um francês cambaleante: a família cuida dos cadáveres da vila. A qualquer momento o serviço pode ser solicitado e as pessoas desta casa têm de cumprir com suas obrigações. É pela França, finalizou derrubando um cálice de champagne.

Pela França, a estupefada turista terminou a garrafa e saiu pela direita, sem se despedir da família que dentro da sala maquiava o corpo de uma velha senhora.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Guerra dos Trinta Anos


A cada discussão que tenho, a cada absurdo que ouço, chego mais perto da conclusão infeliz que ainda engatinhamos na política. A defesa da violência, o uso da mentira como argumento mais valioso, o inacreditável desrespeito às leis, e - principalmente - a inteira falta de pudor são apenas alguns dos fatores que confirmam nossa infantilidade no processo político.

Dizia um velho sábio que as leis são feitas de acordo com a cultura local e não o contrário. No Brasil, podemos tranquilamente melhorar a frase: as leis e a política são feitas de acordo com a cultura local. Metade do país não está preparado para um governo diferente daquele que temos hoje. São reflexos perfeitos do que temos em brasília. São milhões de lulinhas felizes que, se pudessem, fariam o mesmo o que está sendo feito.

Os países que hoje tem a democracia como característica forte passaram por guerras, por revoluções. O Brasil passa pelo PT. A conclusão depressiva é a de que precisamos de muito PT na veia para que a coisa melhore, para que as pessoas se desgarrem da política partidária e passem a defender os interesses do país, para que os indivíduos amadureçam e tenham o poder impressionante do pensar independente. Não sei se veremos - nossa geração - o virar desta página trágica na qual vivemos.

O PT tem um plano de poder e trabalhou nele por três décadas. O PSDB pensou, em longo prazo, e melhorou as engrenagens brasileiras. Não importa que eu tenha um celular, não importa que a Vale seja uma das primeiras empresas do mundo, não importa o Real, não importam os fatos. O que importa é que durante trinta anos foi dito e repetido que tudo estava errado, durante trinta anos as pessoas foram treinadas para ouvir as versões. O projeto de poder do PT se revela perfeito. Nada o abala. E se abalar, a contra-informação abafa. Somos 42% deste país (até agora) e, segundo o presidente, somos nada.

Enquanto os dados rolam, o PSDB terá de encontrar uma saída para o beco em que está: ou atua como o PT na base do quanto pior melhor e se iguala aos adversários, ou assume posições claras no jogo político, mesmo perdendo votos, mas recolocando a história na linha dos fatos. É um processo longo que talvez leve uns trinta anos.

sábado, 16 de outubro de 2010

Improvável

Dizia um ser mágico que todos nós deveríamos aceitar o seguinte desafio diário: antes do café da manhã, pensar em cinco coisas impossíveis. O impossível, entretanto, se juntou com o improvável, transformando coisas simples em atos distantes e espinhosos.  

Talvez tenha havido um tempo em que a magia era o éter e o impossível era a poesia sentida, o amor absoluto, a imagem de um cafuné num beija-flor. Tempo em que o impossível era conquistar a pequena do armazém, chegar à lua, conhecer um chinês. 

Sem que percebêssemos, as regras mudaram - algumas se inverteram - e tudo que está fora da rotina casa-trabalho passou a fazer parte do maravilhoso mundo do desconhecido que nunca será explorado. Sem dúvida é mais fácil não tentar.

Não há lado bom nessa história. Estamos encurralados. O possível é um quadrado 2x2 e o provável, uma quina gelada e iluminada como um aquário. Aqueles que tentam são tidos como loucos desvairados, imaturos incompreensíveis, amaldiçoados a caírem do cavalo, para a alegria dos felizes engessados.

Caminhando na rotina óbvia, pensei no desafio e nas cinco coisas impossíveis que me olham todos os dias insistentemente. Conversar com o mendigo que dorme perto do Buraco do Lume; dar um bom dia sereno para o vendedor que berra o preço da caixa de bis no meu ouvido; ligar para um dos telefones pregados dentro do orelhão e dizer para a mulher do outro lado que ela é fantástica; catar o lixo que insiste em ocupar a história do Arco do Teles; pegar todos os papéis que são oferecidos na rua, parando sempre e contribuindo com um sorriso.

Impossível não é. Apenas improvável.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Morte e Aplausos

Caminhava pela rua do Carmo como sempre fazia. Cigarro acesso, preso aos lábios pela saliva seca. Olhos fixos nos paralelepípedos irregulares. Ouvidos abertos para precaver-me de algum motorista nervoso. Todos os dias, o mesmo. Até aquele dia. 


De susto, um homem alto e bem vestido encostou o cano da pistola na minha barriga. Disse algo como "passa tudo". O cigarro assustado se jogou entre as pedras gastas e eu não pude responder. Tomado por um instinto, entrei em alfa. Não ouvia nada e só tinha olhos para aquelas mãos que ameaçavam minha vida. Num movimento que nunca seria meu, agarrei-lhe a mão e virei o cano gelado contra a barriga do assaltante. Nervoso, apertou o gatilho contra si mesmo. Tudo isso em horas minutos. Todo o movimento sem uma gota de suor.


Abraçado a mim, desabou sem vida, inerte. União de pó. De joelhos ao lado de um corpo que nunca havia visto, fiquei. Fechei-lhe os olhos e permaneci estátua não sei por quanto tempo. O povo, portador de curiosidade absurda, chegou-se em círculo perfeito tomando-me o ar. E eu tentando entender. E o povo a aplaudir.  

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A história das estátuas

A fé na beleza pura, absoluta, é uma ilusão do primeiro minuto da paixão avassaladora. Muitos vivem de muitos primeiros minutos e mantém a beleza absoluta viva, porém inalcançável. No momento em que é tocada, seja com a voz ou com o corpo, a beleza aciona um dispositivo de autodestruição. Pode viver por alguns meses, mas geralmente implode nos primeiros dias.

Há histórias, é verdade, de belezas que duraram anos. Belezas que envelheceram. Exceções do longo conto do amor. A regra de muitos apaixonados é deixar o belo distante e perfeito, protegido de qualquer mal entendido. Para estes, é preferível sentir intensamente aquela beleza – fluxo par da paixão momentânea – e deixá-la como um borrão em algum lapso perdido da memória.

Outros, desbravadores do próprio coração, acreditam que alguma beleza um dia durará para sempre e tentam alucinadamente capturá-la. Comemoram quando a tem, ou melhor, a retém por mais de um par de dias. No final, ela sempre se vai, agarrada as saias da paixão fugitiva. A depressão dura até que os olhos a encontrem em outro rosto que atravessa uma rua qualquer.

A explicação para a irracionalidade, não há, mas indícios de que a beleza não existe em si ganham força quando a experiência avança. Dizem os velhos sábios do travesseiro que a beleza é projetada pelos olhos de quem vê e morta pelo toque de quem ama. A beleza é um conjunto de lembranças, desejos e anseios projetados aleatoriamente pelo perdido de coração.

No momento em que a perfeição projetada encontra uma hospedeira, a toma para si e a transforma em uma estátua de virtudes e perfeição. Neste segundo, o que ama a sensação do nirvana, deixa a beleza em paz protegida por sua aura verde. E o que anseia, parte para uma ataque suicida, no qual buscará a si mesmo e encontrará outrem.

Dizem os sábios do travesseiro que na tentativa de eternizar a beleza, os antigos começaram a produzir estátuas.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O primeiro chapéu

O velho era comum, como muitos velhos que esperam a hora máxima nesta terra. O que o caracterizava no meio da multidão era seu chapéu Panamá. O que o fazia viver era sua mania de andar rumo ao infinito. Andar, era o que fazia; chapéu, era o que vestia. Dizem os livreiros da Praça Tiradentes, amigos do andarilho intelectual, que sua casa era o Beco dos Barbeiros. Revelam também que há muitos anos, o velho tinha se apaixonado pela mulher de um barbeiro que existia no lugar. Hoje, não existem barbeiros naquela pequena rua, muito menos as mulheres deles. 

Talvez desejando sonhar com o passado, o velho dormia por ali. Os guardas municipais que passavam sempre o encontravam adormecido sob o cobertor esfarrapado com as pernas em movimento. O velho tinha o poder de andar nos sonhos. De um dia para o outro, sem que as pedras portuguesas percebessem, os pés cansados não mais caminharam. O velho, da mesma maneira que surgiu, desapareceu. Dizem que chegou ao infinito, dizem que levava em seu colo a tal mulher do barbeiro.

Soube desta curta história no momento em que percebi que podia caminhar nos meus sonhos. Ainda não vejo o infinito, ainda não quero alcançá-lo. Ao menos, já comprei meu primeiro e único chapéu.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A adversativa e a crase

Mais perfeccionista que Abraão não existia. Pra piorar fez da escrita seu modo de ganhar a vida. Escreveu texto, poema, bula de remédio e rótulo de detergente. Vivia imerso em livros e papel, muito papel. Abraão já era velho e não se acostumou aos computadores. Se orgulhava de nunca, em toda a sua vida, ter um texto seu revisado por alguém. Soberano, achava os próprios erros e reescrevia sem parar. No final dos seus setenta anos, era autor de perfeitos quatro textos: uma bula de remédio, um soneto, um rótulo de detergente e um artigo sobre a queda do muro de Berlim. Claramente, o prazo de entrega de todos eles já tinha expirado.

Abraão seguia à risca o seguinte ditado, muito conhecido pelos representantes do sexo masculino: pode se falar tudo de um homem, menos que seja ruim de cama, de volante ou de texto. De cama, seu tempo já passara. De volante, sua coluna não mais permitia. De texto, bom, era a única coisa que o mantinha vivo. No último dia da sua existência, Abraão, como fazia todas as manhãs, preparou o café e sentou-se à mesa com seus quatro textos. Perfeitos, disse ele. Satisfeito, meteu os papéis no envelope e mandou para um amigo em quem confiava. O amigo, cansado de guerra, revisou aquelas construções simples e mandou de volta com um singelo bilhete.

Por muito tempo, nada se soube de Abraão. Dois meses depois, a polícia o encontrou debruçado sobre sua mesa de estimação. Sua mão direita estava pregada ao tampo com a própria caneta e sua boca, engasgada com dúzias de papeis. O reluzente bilhete de apenas três linhas estava na frente do corpo. Nele, o amigo o saudava e dizia: "é uma perfeição, mas faltou uma crase no último parágrafo do texto técnico da bula de remédio". Se pudéssemos imaginar a última fala de Abraão, certamente ela seria: se faltasse uma crase, mas o texto estivesse bom, eu até que sobreviveria".

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Variações do mesmo tema



Caí de uma vez. De joelhos, vi a parede que se apoiava na minha testa. A respiração faltou, suguei, pedi ar ao próprio ar, que me ignorou solenemente. Dois segundos. Vou morrer. Não. Não era a morte. No momento seguinte irrompe o choro. Lágrimas abundantes. Há pouco me faltava ar, agora há excesso de água. Molho a camisa. Enxugo o rosto. A parede força a testa e a testa força a parede. Formigas perdidas fazem a ponte e invadem meu rosto. Duas. Perdidas. Andando em caos. Os soluços atordoam o corpo. Incontrolável. O choro não termina e o corpo quica sobre os joelhos esfolados. Não consigo respirar. Desmaio. Acordo com um beija-flor que gosta de lágrimas salgadas.

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Tem horas que a respiração falta, a barriga encolhe, o rosto se contrai. As mão vão velozes à cabeça, tentam controlar o que não pode ser controlado. Do estômago vem uma onda, carregando todo o peso, reavivando a memória, formigando as pernas. A boca se abre, numa última tentativa de conter as lágrimas. Não estamos acostumados a chorar. E aquela água mágica e salgada, vinda direta do coração, explode e leva os que estão por perto.

Por muito tempo, acreditei que não choraria pela morte de alguém. Por duas vezes, mesmo diante da saudade avassaladora, contive as lágrimas, naturalmente. Elas se esconderam, covardes, em alguma curva do corpo. Achei que seria assim sempre. Garoto. Não era natural. Uma questão de tempo: eu era verde e não tinha maturidade para soluçar como uma criança. 

sábado, 11 de setembro de 2010

A morte e a morte do bom senso

Todos os dias, às 8:30 da manhã, o velho começava o dia em frente a estátua do Tiradentes. Para quem já o conhecia, não havia muitas surpresas. Quinze minutos antes, o velho despontava na esquina da Assembléia com a Primeiro de Março. Andando devagar, arrastando os pés cobertos de trapos, o velho avançava de cabeça baixa, curvado pelo volume grande de placas, papéis e sacos que carregava nas costas, pesado pelas dezenas de latas e garrafas presas ao seu cinto esfolado.

A pele curtida de sol acusava um ex-praiano. Os cabelos brancos e longos denunciavam os setenta e muitos anos, as mãos grossas não diziam nada, pois não se sabia há quanto tempo aquele velho andava perdido pelas ruas, nem qual havia sido seu ofício. O que se sabia, com certeza, era que a pontualidade estava sempre diante dele e o silêncio o acompanhava aonde quer que fosse.

As lendas da cidade geralmente nascidas em lugar nenhum e fortes como um sudoeste, já haviam adotado a estranha figura. Nos becos da cidade velha, diziam que já teve carros, casa, mulher e filhos. Nos puteiros mínimos e nas zonas vermelhas, seguiam firmes as famas de bom amante e ótimo bebedor. No porto, entre caixas e contêineres, se escutava que havia perdido tudo no jogo. Das rodas de samba e das gafieiras,a história dizia que ele tinha sido vítima de uma trama sórdida elaborada por falsos amigos.  

Ignorando os ventos, o velho, com a calma dos que já passaram, montava todos os dias sua cadeira de praia listrada de azul e branco. Sentado e relaxado, começava a armar sua tenda. Os que tiveram coragem de se aproximar perceberam que aqueles papéis que carregava não eram um lixo qualquer, mas sim galhardetes, faixas, fotos gigantes e  placas de campanhas políticas do passado. Dentro daquele mar de rostos e promessas, o velho respirava fundo e começava a montar seu teto.

Quando não chovia ou não havia o incômodo de passeatas e manifestações vazias, a tenda do velho surgia perfeitamente montada às nove da manhã. Satisfeito, o senhor esticava as pernas e guardava silêncio, embalado pelo barulho dos carros que guerreavam na sua frente. Aos que passavam, nada. Os olhos cansados miravam o infinito que, por vezes, terminava na lataria de um ônibus enguiçado.

Na frente da pequena cabana de papel, oscilando sobre a cabeça branca do dono, um grande cartaz de letras roubadas gritava aos cariocas a mensagem que o velho insistia em transmitir: “O bom senso está morto”. Nunca ninguém perguntou a ele o que queria dizer nem o porquê. Era um enigma de fácil resolução mas de difícil acesso. Pelo menos é o que pensavam aqueles que paravam para atravessar a rua e davam com aquele cenário. “Vai que o velho é maluco e tem uma arma”.

Mas ele não tinha, nem nunca tivera.

Por dez anos, ele repetiu o mesmo ritual. Por dez anos ninguém deu-lhe a mínima atenção. Na última semana, um carro desgovernado por um bêbado atingiu o velho e com ele, sua casa de promessas e rostos. O cidadão trôpego, que era deputado de reputação lustrosa, foi solto no mesmo dia. O velho, bem, o velho morreu, assim como o bom senso. No dia seguinte, saiu no jornal que o defunto era cabo eleitoral de candidatos da oposição da assembléia e que estava ali para causar desconforto.

Não, essa versão nunca foi aceita pelos becos, puteiros e rodas de samba. Não sabiam por que o velho estava ali, mas sabiam os motivos pelos quais não estava.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Toque da Morte

Quando a morte espreita, o pensamento desperta. Dei com ela outro dia, agachada atrás do muro que divide a cozinha da copa. No lugar da clássica velha sem rosto, vestida de preto, encontrei uma linda pequena fada rosa. Na altura dos meus joelhos, ela tinha pequenas asas transparentes, cabelos dourados presos em coque e pequenos cintilantes olhos azuis. Como eu sabia que era a morte? Apenas sabia.

Ela sobrevoou minha cabeça e sentou-se no meu ombro direito enquanto eu preparava o jantar. Disse algumas coisas em língua estranha e quando comecei a chorar – culpa da cebola – guardou silêncio. Ela era linda. Tão delicada que a pequena foice que carregava perdia a força do letal e tornava-se um instrumento mágico para preparar floridos jardins.

Mas as coisas mudaram, transformaram-se dentro da minha própria cabeça.

Quando cheguei a casa três dias depois, lá estava ela, sentada no sofá. Mais alta que eu e vestida pesadamente de negro, a Morte fumava tranquilamente meu cigarro. Com as pernas trêmulas, admito, vi as baforadas ganharem o ar, senti aquelas mão enrugadas de unhas vermelhas e, de relance, bati com seus pequenos olhos de gato faminto. A foice gigantesca estava apoiada num vaso de plantas. As plantas tocadas por ela estavam murchas. Ela acabou o cigarro, me olhou por longos minutos e se foi. Por dias não encontrei com ela.

Ontem, justamente ontem, depois do ataque fatal da Morte, eis que a fadinha me aparece novamente. Voando delicada, pediu licença e sentou-se no meu ombro esquerdo. Falando em português claro, pediu para que eu não me preocupasse; que assim era a vida; que ela um dia também viria me buscar. Eu estava com raiva, das mais vermelhas, e não a olhei no rosto.

A fadinha então se postou na minha frente e num piscar de olhos cresceu e transformou-se naquela velha odiosa de negro. Com movimentos horríveis, a velha senhora de olhos de gato encostou os sórdidos dedos de unhas vermelhas na planta que havia murchado na sua primeira visita. Depois me olhou sorrindo pelos olhos e desapareceu. Baixei a cabeça e, quando dei por mim novamente, a planta murcha estava estava de pé, florindo. Chorei sem cebola, como há muito não fazia.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Antídoto vermelho

Hipnotizado. Assim fiquei quando ela entrou no elevador. Não pude ver o rosto, mas pelas marcas do cotovelo e das mãos – que descansavam cruzadas sobre a bunda -, ela deveria ter uns trinta e poucos anos. O cabelo castanho liso ficou a um palmo do meu rosto e o perfume me tomou a consciência. Entrei em alfa e, discretamente, vislumbrei aquela deusa do cotidiano. O vestido verde deixava os ombros curtos e sardentos ao relento e sem defesa ao meu hálito plebeu que provavelmente a incomodou. A cintura era pequena e marcava o início de uma gigantesca bunda. Perfeita, ao menos quando protegida pelo vestido. As pernas de coxas grossas e a panturrilha bem definida completavam o quadro. Estava sob efeito de mágica das mais puras. Não era tesão, não era instinto, era devoção. E tudo se desfez no momento em que meus olhos baixos deram com o pé. Uma deusa não deveria pintar de vermelho as unhas do pé. Saí do elevador, sentindo-me traído. A partir daquele momento, sempre começo uma devoção olhando para os pés delas.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Oração para mim mesmo

Que eu tenha calma. Paciência para saber que o momento passa e os sentimentos se adaptam. Tranqüilidade para entender a minha condição e saber que a maioria das coisas fazem parte de qualquer vida e não só a minha. Sabedoria de, mais que entender, sentir que não sou especial por ter nascido. Sou mais um, apenas mais um, que fez opções certas e erradas. Equilíbrio para não fulminar os outros quando o sangue fala mais alto; o momento passa, a culpa não. Que eu tenha o objetivo de fazer a minha parte e mais e não desejar troco. E, finalmente, que eu tenha cabelos brancos para contar que fui feliz e rir das história boas e más pelas quais passei. 


Oração: s.f. discurso; sermão; fala.


Update: Como sempre, falar é fácil; difícil é fazer.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Candidato por um post



Uma das coisas que me incomodam nesta campanha 2010 é me chamarem de filho. Não sou filho de ninguém, além do MEU pai e da MINHA mãe. Quero o óbvio e o óbvio é meu de direito, não é favor. Pensando nisso, incorporei o candidato, subi no meu banquinho virtual e escrevi o texto abaixo:

"Eu acredito na capacidade de cada um de vocês. Não gosto desta idéia de o presidente ser pai, ser mãe. O presidente tem de ser um parceiro, alguém que sabe o que você precisa e que fará o máximo para que você cresça, para que você melhore. Ninguém neste país é incapaz. Não acredito que você seja. Por isso, trabalharmos juntos é meu maior projeto de governo. Outra coisa: ter escola, hospital, segurança não é favor de nenhum governo. É direito seu! Quero que todo mundo possa deixar seus filhos na escola e ter certeza que a educação é de boa qualidade, possa ir a um hospital se precisar. Esse é o papel do presidente, garantir que você tenha o que precisa para fazer seu próprio caminho. Falam por aí que o brasileiro precisa de uma mãe. Não acredito. O brasileiro é inteligente, sabe encontrar soluções. O brasileiro precisa de um parceiro. E eu estou pronto e quero ser seu parceiro."

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Guerra

É guerra. Naquele dia precisei sair na Central. Como qualquer cidadão, postei-me diante da porta, esperando o momento de desembarcar. O trem saiu da escuridão do túnel e foi iluminado pela estação e logo sombreado pela multidão. Cerca de 40 pessoas aguardavam para entrar no trem, do outro lado da porta na qual eu estava. Como carros engatados, elas se moviam em ondas curtas. Os pés fincados no chão e o corpo mareando pra frente e pra trás, hipnotizados. Fiz sinal, garoto, de que gostaria de sair. Ninguém tomou conhecimento. As portas abriram, forcei a saída, mas fui carregado para o meio do vagão. Os que entravam, gritavam, se divertiam com a própria tragédia. E eu queria sair. Avancei dois passos, derrubei uma senhora. Quando estendi minha mão para ajudá-la, retrocedi mais quatro passos. Decidi entrar no jogo. Empurrei, soquei, armei meus cotovelos. Me olharam de cara feia, eu olhei de cara feia. E quando o apito anunciava o fechamento das portas, consegui. Fui expelido do trem. Pensei, são sardinhas entrando na lata.

No final do dia, quando voltei à estação, mudei minha conclusão. Naquele momento, era eu a empurrar e entrar no vagão. Não são sardinhas. Somos sardinhas.

sábado, 28 de agosto de 2010

Laranjada no copo de papel (quando começamos a passar)

Durante anos fui assíduo. Depois de almoçar, ia todos os dias tomar uma laranjada no copo de papel. O boteco ficava na Buenos Aires, quase com Primeiro de Março - a rua onde o imperador desfilava sua barba.

O lugar não era sujo, tampouco limpo. Uma bancada de ferro e vidro protegia alguns salgados anteontinos espalhados estratégicamente para ocupar todo o espaço. O senhor, dono do estabelecimento, devia estar na casa dos sessenta e aparentava estar ali desde sempre. Com habilidade, sacava o copo de papel de um tubo, o encaixava num suporte de metal e abaixava a alavanca. O suco vinha com força, de algum lugar entre as ruínas de uma oca dos Guarani e o chão. Era imperdível.

Pois bem, voltei ao local semana passada, seco por uma laranjada. E encontro um aquário. Explico, o velho do suco passou o ponto e os novos donos resolveram modernizar. Maldita modernidade. O lugar era literalmente um aquário. Luzes brancas no lugar das velhas amarelas, paredes e chão de azulejos claros e com textura no lugar do chão preto com bolinhas brancas e das paredes sujas, uma reluzente bancada de mármore substituindo o vidro dos salgados anteontinos.

Perguntei se serviam suco. A atendente de uniforme de aeromoça disse que sim e sacou um copo de plástico. Fiquei nervoso, admito e, meio sem jeito, perguntei se havia a possibilidade de me servir a laranjada no copo de papel. Ela, jovem, pintada, com um logotipo qualquer estampado na testa, me olhou estranho e mostrou os velhos e bons copos de papel. Se justificou: disse que ninguém mais pedia aquilo. "Aquilo". Pelo menos a alavanca ainda existia.

Os clientes sarados vindos de alguma academia e três garotas provavelmente da quatro por quatro me olharam com desdém e eu molhei minha barba da mesma maneira que fazia quando não se podia ver as poças de suco no velho chão preto com bolinhas brancas.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Forte

Ele sempre esteve lá. Imponente, gigante e preto. Os locais chamavam a estrutura de Black Fort. Diz a lenda que já foi usado por guerreiros da Babilônia, espartanos sedentos por sangue, putas sonhadoras e órfãos de padres safados.

Hoje é apenas uma sombra que não deixa a grama crescer no lado sul. Ele sempre esteve lá e eu nunca tive coragem de chegar perto. Ouvia ou imaginava ouvir o grito dos guerreiros, os gemidos de amores impossíveis das putas, o choro dos órfãos. Nunca fui.

Velho, me permiti conversar com as vozes e subir as escadas da ruína. Abri os ouvidos e ignorei as mensagens e reclamações. Subi 473 lances de escada, tropecei 12 vezes e enfiei minha bengala em quatro buracos. No final, cheguei ao alto da torre norte, a mais alta e bela do forte.

Lá de cima conclui o óbvio. O panorama era lindo, mas o forte era realmente preto. Por algum motivo acreditava que quando chegasse lá, iria me deparar com outra cor, talvez branca, laranja ou até lilás. O óbvio machuca, o óbvio é triste. Desci e me afastei o máximo que pude.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Milagres subornados

Deus disse: venham a mim. Ninguém se moveu. Mandou seu filho. Na arrogância adolescente, disse: levanta-te e anda. Ninguém levantou, muito menos andou. Tentou mais uma vez: os que não podem ver, abram os olhos e contemplem. Mas ninguém viu nada por detrás das cataratas. Atrás da cortina azul de bordados borboleta, o diabo prendia o riso. Deus cansou, pediu uma água com gás e foi fumar um cigarro no jardim. Seu filho, ainda novo, se trancou no quarto e se perdeu nas músicas do iPod. O diabo gargalhava. Ria, pois depois que o todo poderoso saiu da sala, o tetraplégico andou e o cego viu. A primeira coisa que fizeram foi cobrar a parte deles no acordo. O diabo pagou rindo.