segunda-feira, 21 de junho de 2010

Espelhou!

O desafio é claro e direto. É o último lance e ele quer a minha melhor. Pede três, o que esvazia minha mão. Aceito com o orgulho dos nove anos. No chão, ele de pernas abertas, corpo curvado, mãos unidas, se prepara para o lance final. Meus olhos fixos, esperam um erro pouco provável. Ele é bom, muito bom. Vive fazendo aquilo. Deito, quero ver o lance por outro ângulo na esperança de notar alguma irregularidade.

As mãos de meu adversário sobem e descem em câmera lenta. Por um segundo não vejo o objeto que defendi por tantas rodadas. A lufada de vento se forma fazendo com que rostos girem e flutuem num céu de 15 centímetros. Rodam as seis, juntas. Putz, as seis cairiam para o mesmo lado. 50 a 50. Espero. Diacho de demora. Ei! Uma se soltou. É ela. Cinco caem viradas pra cima. Fariam parte do plantel de outro. A desejada faz manha, roda um pouco mais e, na descida, esbarra na perna dele. Espelhou! E junto com a espelhada, tia Jurema termina o jogo. Hora de almoçar.

Frieza marcada

O mundo fica muito mais frio quando o inverno tem hora marcada pra chegar. Segundo o jornal da televisão, a estação da neve começou às 8:27 da manhã de hoje.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O caso das fitas (parte 1)

Tinha tudo armazenado. Pilhas de fitas de vídeos dentro do armário. Todas com etiquetas que nada mais mostravam que siglas. Algumas ostentavam mj10, md09, mn06, mmç08. Todas feitas com letras góticas e caneta tinteira. Roberto, o dono desta coleção, sempre foi considerado estranho por seus colegas, já que nunca teve amigos. Tinha modas passageiras; já colecionara pilhas, tampas de canetas, cuecas furadas. Há cinco anos, a mania era cuidar das tais fitas.

Era um ser realmente peculiar. Todos os dias, por volta das sete da noite, quando chegava do trabalho, ele, depois de beijar a mulher, se trancava no quarto por exatos cinco minutos. Sozinho, escancarava o armário, que vivia trancado com a ajuda de mais de três cadeados, e começava a admirar sua coleção de fitas. Baixinho, sem muita graça, considerado um homem feio pela maioria das mulheres, exceto sua mãe e sua avó, aquele era o único momento em que se sentia realmente feliz. Olhar aquela infinidade de fitas era um prazer imenso.

Sua mulher, Elza, companheira e dedicada, tentava entender aquela pequena loucura. Não havia onde assisti-las já que não tinham aparelho para aquele tipo de vídeo. Não entendia também de onde brotavam as fitas, nem lembrava quando começaram a encher o armário. Tinha perguntado ao marido sobre aquilo uma dezena de vezes, mas as respostas sempre foram grossas seguidas por dias de péssimo humor. No final das contas, conformou-se com a extravagância e só se lembrava daquilo quando via, pela fechadura, seu marido sentado no chão de pernas cruzadas olhando a tal coleção.

No natal seguinte ao começo daquela mania, Elza deu de presente para Roberto um aparelho especial para que pudessem, enfim, apreciar as fitas – se possível juntos. Roberto com o sorriso de dentes curtos e amarelos agradeceu e deixou o aparelho cair. Ele nunca foi um bom ator, e a mulher percebeu que ele quase jogara no chão o presente. Espatifado, não teve tempo de ser útil; nenhuma das fitas rodou. A partir daquele momento, a curiosidade tomou a cabeça de Elza que faria de tudo para descobrir o que significava aquela proteção patológica.

Num dia de janeiro, depois que Roberto saiu para trabalhar, a mulher decidiu tomar uma atitude concreta para desvendar aquele grande mistério. Quando a tarde chegou, Elza chamou um chaveiro. Era óbvio. Era a solução para o problema que não a deixava mais dormir. Enquanto esperava a campanhinha tocar, Elza começou um bolão consigo mesma: pornografia? Jogos de futebol? Horário eleitoral dos anos 80? Não demoraria para ela descobrir.

Às retas

Um obrigado é palavra fácil,
um tanto descompromissada
assim como um desculpa
balbuciado e ágil,
como o que não quer nada.

Muito mais difícil e verdadeiro
é uma boa risada rasgada,
é um silêncio de admiração
ou uma brincadeira daqueles que são

mais do que palavras
mais do que apertos de mão
aqueles que se abraçam e que sentem
que vão e que voltam,
mas que sempre serão

Sentimentos sem nome,
isso é o que buscamos,
isso é o que temos,
protegidos de qualquer porém,
de qualquer senão.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Memória

Érico saiu rolando escada abaixo e caiu de pé já correndo pra porta de vidro quebrou com o ombro e rolou rua afora já roubando a bicicleta anônima cantando pneu no sereno do asfalto avançou o sinal sem frear ladeira abaixo vento na fuça cantando iron maiden a plenos pulmões xingando a velha a criança o mendigo o polícia o esquilo a porra toda cruza a avenida roleta russa sobrevive continua esquece e lembra o porquê da urgência três vezes e para.

Ofegante.

Se atira na frente do Santana 94 saca o 38 e

Arranca o coroa do carro chuta o viado (viado! viado!) no estômago sem pressa chuta de novo ri de nervoso moto-contínuo se arrepende e chora no volante treme grita limpa o para-brisa tchum tchum tchum tchum atropela o cachorro vadio acelera sem rumo perdendo controle na curva do parque retoma o controle os sentidos se esquece amolece reduz, reduz, reduz,, para.

Érico esquece.

Que sorte.

Portas Todas

Como abri portas. Mais: como perdi tempo na frente delas pensando se valeria à pena abri-las. Em algumas, vi luz saindo pela fresta e fui sem medo. Outras, abri no impulso e me arrependi depois. O que mais me marcou, porém, foram aquelas que tinham uma parede por detrás. Eram portas de mentira. Com maçanetas, pesadas, mas que guardavam o nada. Muito diferente de guardar o vazio. Estas foram muitas. O vazio. Chegava a entrar, procurar nas quinas, sentar e esperar para concluir que realmente não havia nada. Quando menos esperava, abri uma porta óbvia e ali mesmo encontrei o que buscava. Desde então, passeio pelos corredores e admiro as portas que não desejo mais abrir. E a vida virou um grande passeio.