sexta-feira, 30 de abril de 2010

Diário de um senhor (página 40)

Enfim compreendi a teoria de Einstein. Demorei 96 anos para saber que o tempo pode passar mais devagar. Na verdade, passei a entender mais coisas do que gostaria. Uma delas é que as pessoas devem acreditar que velhice é contagiosa. Bom, na verdade, é e bastante. Até hoje nunca vi alguém que não envelhecesse.

Escrevo essas palavras, pois fiz uma descoberta incômoda e queria compartilhar. A última vez que recebi um carinho gratuito ou um cafuné demorado foi há dez anos, quando minha mulher de toda a vida morreu. Desde então transformei-me para os outros em um tipo de estátua. Na verdade, o era há muito tempo, mas só percebi quando passei a dormir sozinho.

Entendam que não é uma reclamação e sim uma constatação. Eu mesmo nunca devo ter feito carinho em meus avós ou pais depois que virei adulto. O máximo que lembro são abraços rápidos e talvez, com um pouco de sorte, um beijo nas bochechas ou nas mãos.

E assim como meus pais e avós perderam o tato com o mundo, eu também acabei transformado em ferro ou latão junto com milhares de senhores e senhoras que tomam os banquinhos das praças nos finais de tarde.

Interessante é que o carinho claramente existe. Os olhares passam amor e admiração, mas algo – que não entendo – impede o contato físico. Sinto muita falta do contato físico. Poderia apostar que meus cabelos brancos nunca foram afagados. Triste, para mim, evidentemente.

A conclusão a que chego só pode ser uma. Como eu na juventude tinha medo de envelhecer e me afastava fisicamente dos mais velhos, os mais novos de hoje sentem o mesmo e evitam a mim. Queria dizer que não adianta. Nada adianta. A velhice chega, mas ela pode vir com ou sem cafuné.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Curiosidade Mórbida

Procurando espaço para respirar entre as paredes cheias de musgo, tento encontrar o fim deste corredor. Por pura curiosidade suicida entrei na fresta que se escondia atrás de arbustos no meio da floresta. Uma placa dizia, Antes de entrar, deixe aqui sua sombra. E assim o fiz sem saber muito quanto vale uma sombra.

Começo a caminhada, a aventura se faz a melhor do mundo. Meu cérebro não funciona e a adrenalina comanda meu corpo. Alguns metros adiante, percebo que sangue escorre da minha cabeça, mas não sinto nenhuma dor ou incômodo. Me mordo, me aperto e, enfim, descubro para que servem as sombras.

Quando meu relógio, que nunca uso, bate 12h, descubro que há vinte minutos me enfiei neste buraco. Ao perceber as horas, vejo também que meus braços estão cobertos de insetos, que minha cara é lama pura e imagino que não me reconheceria no espelho com os tantos cortes sentidos na pele.

O nervosismo substitui a adrenalina com a velocidade da luz. Os insetos que antes não via, agora sinto. Se movendo em todas as direções num baile de antenas. A lama que não existia chega aos meus joelhos e cobre minhas mãos. Os cortes ardem e eu percebo que há luz no fim o túnel.

A luz é tênue, mas consegue iluminar o caminho. Na verdade sinto a luz, mas não posso identificar de onde vem. Meus olhos lacrimejam sem parar e a visão está completamente embaçada. Sinto minha garganta, seca. Minha boca cheia de terra e larvas. Meu nariz que não cheira mais nada.

Teias de aranha me aquecem quando não há frio ou calor. Só há anestesia. Ratos se aninham em minhas pernas, como gatos dizendo bom dia. Insetos fazem o que se espera deles, mordem. Mordem muito. Aranhas brincam com meus lábios e eu não sinto, simplesmente. A luz desaparece.

Por duas vezes tropeço. No mesmo lugar. Me afundo na tal lama que chegava aos meus joelhos. A terra molhada misturada a objetos irreconhecíveis acalmam a dor que não sinto, mas vejo. O couro cabeludo também sangra e percebo que meus tufos de cabelo se juntam a outro tufos mais antigos presos no teto baixo cheio de espinhos.

O nervosismo, segundo a chegar, dá lugar ao comodismo, triste e último. A cabeça não existe e o corpo se move por vontade própria obedecendo a um instinto antigo de sobrevivência. Nada mais resta, só a respiração dificultada pelos insetos insistentes e o sangue que escorre, incomodando meus olhos e fazendo-me piscar.

Acordo. Parece que desmaiei. Tenho três ratos no colo que tentam alcançar uma cobra enrolada no meu pescoço. Meus olhos quase não se abrem e ainda assim, sei que são ratos e sei que é uma cobra. Meu rosto está devastado, minha língua imobilizada. Fecho os olhos e tento ver o mar, mas sinto a luz e, pela última vez, encaro minha sombra.

Na escuridão que domina a mais linda das florestas
Está a resposta
No coração que mente, rouba, mata e deseja o mal
Está a resposta

No grito que destrói o canto de todas as aves
Está a resposta
No fedor, no feio, no ultrajante vômito do mundo
Está a resposta

Porque a resposta está onde menos esperamos
A resposta nos aguarda onde nunca exploramos
Quando viramos a cara, nos escondemos das respostas
Quando corremos do medo, perdemos a aposta.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Enxurrada de Silêncio

Há sete dias ele parou de falar. Seus olhos não mostravam agonia nem medo. Amigos e familiares reunidos na sala ou no bar da esquina comentavam o acontecido. Ninguém entendia. Não houve nenhum acidente. Brigou com a ex-namorada, mas era comum, natural. Seus pais começaram a pensar que fosse um capricho vaidoso. Sua avó rezava e pedia a são benedito que o fizesse voltar a falar. Nada adiantava. Sua boca não se abria, nem para gemidos. Seu irmão num ato desesperado espetou-o com um alfinete. Cara de dor, mãos contraídas, mas nenhum som. Outra: não revidou. Olhou para o irmão com expressão rasgada de pena, teatral. Tinha-se levantado com o susto, mas sentou-se calmo, coçando levemente a coxa furada. Para os que assistiam não existia outra saída que não esperar.

Foram sete dias de tentativas desesperadas, uma eternidade de silêncio inconsolável e de muito barulho. Mais de cinqüenta pessoas passaram pela porta daquele quarto. Toda a pequena cidade se mobilizou. Incontáveis beijos e abraços, verdadeiros ou não, tocaram um corpo estático, onde só a expressão se alterava.

Lá pelas duas da manhã do sétimo dia, os irmãos que voltavam da bebedeira encontraram o dono do silêncio sentado no sofá. Assustados já que ele raras vezes tinha ficado de pé nesta última semana – começaram a gritar, soando o alarme. Em exatamente dois minutos aquele que não abria a boca estava cercado de mãos, beijos e olhares de interrogação.

Quando o silêncio mais uma vez tomou conta daquela família e fez por um milésimo de segundo que todos os presentes ficassem calados, a boca que havia se mantido em silêncio se abriu. Emitiu um silvo forte e agudo que levou as mãos de todos às orelhas. Um silêncio, mais profundo, jamais sentido nem pela avó que tinha mais de oitenta, seguiu o ensurdecedor barulho. Era uma pausa necessária, mostrando que algo iria vir e não seria uma coisa qualquer.

Iniciou-se então uma narrativa, com ritmo rápido quase incompreensível. Com silabas atropeladas, toda a história do mundo foi contada desde sua criação até o seu fim, não tão próximo, mas já com data marcada. O mundo foi desconstruído e reconstruído, todos os conceitos foram explicados e as grandes perguntas foram respondidas.

Depois de uma enxurrada de palavras e revelações, o silêncio voltou como uma corrente, invadindo com violência o corpo daquele que ousou falar tudo aquilo. Rompeu seu coração, rasgou seu pulmão, fazendo o sangue encher sua boca. Seu corpo caiu inerte, desta vez sem nenhuma expressão, e ficou no chão sozinho na solidão dos recém mortos.

Sua família não ousou nenhum movimento por muito tempo, talvez três dias. Ficaram estáticos sem se olharem, talvez por vergonha de suas vidas sem propósito, talvez esperando que alguém se abaixasse para confirmar a morte do garoto, que com tanto sangue e nenhum movimento não precisava ser confirmada. As campainhas e os telefones insistentes não interferiram naquele interminável momento de reflexão.

Por muito tempo, nada se soube daquela estranha família que um dia experimentou o silêncio. O que restava eram lendas que percorriam a cidade. O jardineiro da paróquia disse que o pai foi morar numa ilha deserta com a mãe reatando um relacionamento que já estava enterrado. O dono do açougue afirma que o irmão mais velho morreu na Antártica defendendo as focas dos caçadores. Os meninos do porto dizem ter ouvidos histórias de uma avó que vive de contar histórias, e a TV, outro dia, mostrou que o irmão mais novo estava correndo o mundo literalmente. As câmeras pegaram o menino correndo na Nigéria, décimo quinto país que visitava. Atrás dele, uma multidão sorridente e sem roupas seguia seus passos.

domingo, 25 de abril de 2010

Amor atrasado

Era a segunda ou terceira vez que te via. Não tinha conseguido me aproximar ainda. O máximo que tinha conseguido eram respostas monossilábicas que nada adiantavam e que nada diminuiam minha agonia. Você também não ajudava nos meus planos. Sempre concentrada nos seus afazeres, pouco me dava atenção. Quando me olhava, usava um certo olhar de desdém que evidentemente me faziam menor diante de tudo. Tentei cartas, tentei e-mail, você nunca me respondia. Falei com suas amigas. Cheguei a falar com seus pais, ou melhor, só o seu pai que, apesar de muito cordial, me pareceu bastante assustador. Nada adiantava, nada melhorava minha condição diante de seus olhos. Neste meio tempo arrumei um emprego melhor e pude me vestir melhor, fazer exercícios físicos, enfim cuidar-me melhor. Passaram-se três meses. Estava dez quilos mais forte, entenda bem: forte, não gordo. Só tinha roupas de qualidade que me davam um ar sofisticado. Usava lentes no lugar daqueles óculos pesados. Passava gel no cabelo e tinha pagado a segunda parcela do meu carrinho zero. Nem assim você me dava atenção. Até que um dia apareci morto dentro do banheiro da faculdade. Uma faca de cozinha daquelas bem vagabundas estava enterrada no terceiro buraco aberto no meu peito. Pelo jeito não gritei, talvez surpreso, provavelmente feliz. As facadas vinham acompanhadas de sussurros: te amo, te amo, te amo.

Corrida

Ele corria mais do que ninguém. Corria para acordar. Escovava os dentes ao mesmo tempo em que colocava as meias. Corria para ir ao trabalho. Perdeu as contas de quantas pessoas atropelou em seu caminho, de quantos bons dias deixou no ar e de quantos sorrisos deixou de perceber. Corria para fazer suas tarefas. Na verdade nem conseguia lembrar o que tinha feito no dia anterior. Corria para comer. Engasgou incontaveis vezes e foi salvo outras tantas por garçons e fregueses atentos que impediram uma morte prematura consequência de um caroço de azeitona. Corria para conhecer gente. Sua primeira namorada se apresentou quanto terminaram sua primeira noite de sexo, que durou, segundo o relógio dela, dois minutos. E corria também para se despedir. No caso da primeira namorada, esqueceu de dizer o próprio nome e não tinha a menor idéia do nome dela. Corria de si mesmo e não lembrava de como era seu rosto. Espelhos não tinha em casa. Correu tanto que chegou na frente, completamente sozinho. Quando parou, o fez aos 75 anos e não por vontade própria, mas obrigado por uma artrite que o impedia de levantar da cadeira. No primeiro dia que sentou em sua poltrona com um atestado médico nas mãos descobriu que não tinha agenda telefonica, percebeu que não conhecia ninguém, constatou que não havia mais um porquê. Tentou levantar e caiu de joelhos diante do aparelho de TV preto e branco. Morreu vagarosamente com pontadas cadenciadas que atingiam seu coração de hora em hora. Morreu lentamente achando que a morte também iria ser rápida.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Indias do Além Mar

No dia 26 de abril de 2015 eu morri. Mas foi uma morte espetacular. Me lembro bem do momento, dos movimentos, das faces, das contrações. Encontrei o meu fim, dando de cara com meu começo; já explico.

Era uma quarta-feira e como faço todas as quartas, terminei meu expediente e fui tomar minha cerveja no bar do Chico que fica na esquina lá de casa. O botequim era como meu segundo lar. Ali, entrava tirando a gravata, desabotoando a camisa, xingando um e outro carinhosamente como quem diz boa tarde.

Como sempre, sentei-me bem em frente aos risoles de camarão e que fique claro: os de camarão. (Em frente aos risoles de palmito - identificados por uma bolinha de massa por cima - sentava-se o Freitas, que só bebia água). Bom, em frente aos risoles de camarão, pedi uma cerveja, pão velho, azeite e sal e com esses ingredientes as horas passavam rápido; comendo, bebendo e dando pitaco nas conversas dos outros.

Tudo ia bem naquela dia, o calor dava lugar a uma brisa leve, o Fluminense ganhava de 2 a 0 do Cabofriense e minha mulher não tinha me ligado ainda. Entre pensamentos soltos despertei do maravilhoso mundo dos altos com uma vontade espetacular de ir ao banheiro. Levantei do banquinho, tropecei no cachorro da dona Clotilde, cumprimentei um simpático bêbado, fiz careta para o seu Joaquim e seu charuto e entrei no cubículo, descarreguei meus excessos e voltei por onde tinha ido. Enquanto fechava a porta do banheiro a vi.

Minha mulher. Ela estava linda, como quando a conheci dez anos atrás. Estava com o rosto limpo, sem maquiagem, o que realçava seus traços indígenas; seus cabelos negros estavam soltos, selvagens. Usava um vestido amarelo dois dedos abaixo da dobra da bunda e uma sandália de palha, o que tornava o quadro uma pintura naturalista sem igual.O tempo parou e naqueles minutos, ou melhor, segundos, a vi me abraçando quando nos conhecemos, lembrei dos beijos enlouquecidos, dos apertos endiabrados, do tesão incontrolável de um passado enterrado.

E me lembrei disso tudo pq nela vi não só a beleza natural que sempre foi uma marca registrada. Além de todos os traços perfeitos, o corpo escultural, a luz sobrenaturtal, havia nela raiva; um desespero que vinha do fundo do estômago e que transfigurava toda aquela beleza em força pura, em energia cósmica, em pressão, em vibrações que por pouco não derrubaram os copos e garrafas que se equilibravam nas estantes do Chico.

Talvez não tenha desejado entender o que estava passando. A imagem daquela mulher perfeita, a energia genuinamente original, o peso daqueles olhos me puseram em um estado de recepção, de frigidez completa. Nenhum músculo meu se mexeu, fiquei parado, com as mãos baixas, respiração rápida e olhos fixos em uma lembrança que voltava, em uma memória que se tornava um momento presente de novo. Era como se estivesse em alfa, mas consciente e bastante acordado.

Enquanto percebia minha condição de estátua, ela avançou. E enquanto avançava, percebi que os risoles de camarão e de palmito tinham trocado de lugar, que minha cerveja era água e que o Freitas era uma mulher que só bebia cana, que o cachorro da dona Clotilde era um senhor de nome Evandro, que o simpático bêbado era meu filho, que seu Joaquim na verdade era um fiscal do ministério da saúde que analisava os charutos vendidos na casa. Quando me dei conta de tudo isso, o que para mim foi um terrível esforço, senti a pontada.

A faca entrou e estraçalhou meu velho estômago e subiu e rasgou e cortou a bisnaga com azeite e sal que não tinha mastigado direito. Senti a outra mão em minhas costas, apertando meu corpo contra a lâmina, senti o respirar nervoso no meu pescoço, senti o cheiro daqueles cabelos negros pelo quais me apaixonei dez anos atrás. Senti um monte de coisas que não podem ser descritas por palavras. Senti pânico, senti leveza, senti horror, senti uma tranquilidade imensa e senti saudades. Saudades do que havia esquecido. Como pude esquecer isso? Como?

Entre respirações aceleradas, batimentos cardíacos a ponto de desandar, suores, gritos, cabelos, peles, cheiros, encontrei os olhos dela e com os olhos vi que ela me perdoava. Entendi que naquele ato trágico não havia vingança, não havia ódio e sim amor, o mais puro amor que pode existir, o amor que mata. Me fixei em seus olhos esperando o momento em que meu coração entraria em colapso, me fixei em seu corpo, em seu rosto e vi a morte, sensual como uma dançarina árabe, me recolhendo, me apertando, me usando, me cuspindo, me acariciando.

E ali, naquele microssegundo, cometi meu último ato de traição. A morte beijei, agarrei, rasguei, invadi e com ela vi estrelas. Gozei centenas de vezes e suei litros de amor e gritei palavras sujas em línguas que nunca conheci. Ali ganhei minha liberdade, ali decidi de uma vez por todas abandonar a índia por quem havia me apaixonado. Ali fizemos uma troca, ela me apresentou a minha amante definitiva e eu a presenteei com o meu desaparecimento.

Feliz e cansado, acendi um cigarro e passei a mão na cabeça da índia que ria sobre meu corpo.