terça-feira, 20 de julho de 2010

A bicicleta

Foi rápido, muito rápido. Estava fumando um cigarro, pensativo. Ela passou pedalando uma bicicleta verde-abacate. Linda, morena, cabelos lisos, pele fresca, molhada do suor do mar. A visão impediu que a tragada se completasse e tonteei.

Ela parou, me olhou com aqueles olhos grandes de esquilo e perguntou meu nome. Respondi. Jantamos. Almoçamos. Nos beijamos. Fizemos sexo. Conheci os pais dela. Ela, os meus. Rimos. Bebemos. Brindamos. Viajamos. Nos casamos. Brigamos. Fizemos amor. Tivemos o primeiro filho. Brigamos. Às pazes. Viajamos. Tivemos o segundo filho. Compramos nossa casa. Quase nos divorciamos. Fizemos o justo. Nos apaixonamos. Em seguida esquecemos. Conversamos. Mudamos. Viajamos. Brigamos. Não fazíamos mais nada. Envelhecemos. Vimos fotos. Viramos fotos. Morremos. Não lembrávamos o nome um do outro.

Quando a tragada enfim saiu por minhas narinas, a bicicleta verde-abacate já estava longe. Ela era apenas uma sombra. Pra comemorar o que não foi, acendi o segundo cigarro.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Cada um com seu problema

Para alguns a origem da vida é um grande problema. Para outros, saber se o mês vai caber no orçamento é o principal. Existem, ainda, aqueles que estão entre a existência ou não de um ser divino e tantos mais que perdem noites para dar um final feliz a uma equação. Mas nada se compara ao assunto que ocupa a cabeça do nosso José.

José, homem simples, se orgulha de ter pelo menos 15 apelidos. Os mais usados são os clássicos zé, zeca e jão. Zeca trabalha desde adolescente como técnico instalador de uma operadora de TV a cabo. Para ele as grandes questões do mundo se resumem a apenas uma: por que é permitida a produção de conduítes de uma polegada?

Enquanto o motorista da empresa reclama da péssima engenharia de trânsito da cidade, Jão tenta calcular o tempo de atendimento para cada instalação segundo a grossura do conduíte. O de meia polegada é o pior e, dependendo do tempo de uso e da sujeira, Zé pode perder até três horas. Mas, se o conduíte for novo e tiver duas polegadas, o paraíso se faz presente e ele termina o serviço em minutos.

O próximo passo de José é se candidatar a vereador para propor uma lei que proíba a produção de conduítes com menos de duas polegadas. Jão acha que dá pra ganhar. Zeca acha que com o problema resolvido, a vida perderia a graça. E Zé, bom, Zé está imerso em cálculos e conduítes e não pode dar nenhuma opinião.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

João Paciência

João tinha paciência. Tanta paciência que era conhecido como sábio. Não por saber muitas coisas, mas por nunca, jamais, perder a bendita paciência. E assim João fez sua fama. Chegou a tal ponto que era procurado por faladores de todo o país. Muitos iam para falar, simplesmente. Soltavam seqüências de palavras como numa terapia a base de cerveja ( João tinha o hábito de servir a gelada para seus convidados intrusos). Outros iam apenas para testar aquele santo. Xingavam, falavam os maiores absurdos, tentando a todo custo fazê-lo perder a calma. Mas nunca aconteceu.

A lenda de João Paciência, como era conhecido o cidadão, era e ainda é tão forte que um dia mais de 200 carros estacionaram nos arredores da casa dele. Não eram faladores desesperados em busca de um ouvido paciente, mas um potente buzinaço. Dizem que o evento ensurdecedor durou 30 minutos e, ao final, João Paciência foi à varanda e acenou placidamente.

Toda esta paciência durou 30 anos. Quando fez 31, João Paciência tentou cancelar uma conta de celular. Na quinta transferência entre atendentes, João explodiu. É possível que a casa dele ainda exista e que o telefone ainda esteja fora do gancho. É certo que sob a porta, pilhas de contas do tal celular estejam amontoadas. O que importa, entretanto, é que a paciência nunca mais seria a mesma. A paciência verdadeira, agora, era apenas parte de uma lenda.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A corda

A corda

A corda sempre arrebenta. No entanto, sempre acreditamos e sempre vamos acreditar que podemos esticá-la um pouco mais. Desejamos que nosso cotidiano seja um filme, melhor, que tenha trechos de filmes. Neste sentido, nunca morreremos, nunca sofreremos um acidente e, caso aconteça, servirá apenas de desculpa para ganhar uma linda cicatriz. O problema é que, infelizmente, o óbvio trágico sempre acaba acontecendo. É fato. Quando você acha que vai dar merda é porque provavelmente vai dar merda. Mas o que fazemos, em geral? Pagamos pra ver e a merda, sempre sorridente, acontece. Sinto muito, não tem volta.

O vício

Chegam então as lamentações juntos com os "se's". Ah se eu não tivesse...Tarde, demasiado tarde. A vida continua e com ela a merda nos espreita. O que fazemos? Por pura diversão ou seja lá o que for isso, chamamos por ela, procuramos por ela. Sabemos que, de novo, vai dar merda, mas repetimos o erro, só pra ver se daria mesmo. Ah! Tenha paciência. E esse vício pega pior que cigarro.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Contribuição dos 92 anos

Sabe a coluna Prestes? Então, eu estava lá. Tinha oito anos é verdade, mas estava lá. Sabe a Revolução de 1930? E o Estado Novo? É, fui contra, briguei e fui preso, torturado pelas minhas idéias. Aliás, falando nisso, nunca entendi o porquê de chamarmos revolução aquela de 30 e golpe o de 64. Ou tudo é golpe ou tudo é revolução. Mas isso não importa.

Vontade de brigar nunca me faltou e eu era apaixonado. A discussão política era um vício. Fazia com prazer. Nunca tive tempo de namorar, de me envolver. O que eu queria era mudar o mundo. O resto era assunto da pequena burguesia.

O tempo passou, mas eu não. Outra conclusão fantástica. Pessoas não mudam, no máximo afinam o discurso. Nem isso eu fiz. E fui exilado em 64, voltei com a anistia, fui contra Tranquedo e o colégio eleitoral, mas no final fiz campanha para ele. Fui pra rua pelo Lula e vi Collor ganhar. Quando surgiu a oportunidade, ajudei a derrubar o irritado presidente. Tinha 74 anos e não fugi das cores no rosto.

Depois vi Itamar, vi FHC. E, finalmente, vi Prestes ganhar a eleição. E pra quê? Pra simplesmente descobrir que durante toda a minha vida acreditei no que eu queria acreditar. Me escondi da verdade, fugi da responsabilidade de tentar resolver a minha vida. E, a verdade, não há melhor solução para fugir de si mesmo do que propor a mudança dos outros.

O mundo não mudou, só afinaram os discursos. Eu não mudei e só ficaram as paredes. Queria ter morrido antes de 2002, mas não deu. Agora, Inês é morta e eu só posso esperar o momento de encontrar-me com ela.

Terça Escura - Anotações

Não cansa, jamais.
Estivera morto, estorvo
na terra de satanás.

Mas não, vivo da silva
caminha turvo sob o sol
em constante curvo bemol

Não parte, jamais.
Ainda existe, simples barco
latejando no muro do cais

E assim foi, é e será
sombra triste de morte
ressuscitada todo dia
por pura falta de sorte

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Vida,
verde e quente.
Não quero.
Vida,
preta e fria.
Espero.
E no final
atrofia
e não saio do lugar