terça-feira, 21 de setembro de 2010

A adversativa e a crase

Mais perfeccionista que Abraão não existia. Pra piorar fez da escrita seu modo de ganhar a vida. Escreveu texto, poema, bula de remédio e rótulo de detergente. Vivia imerso em livros e papel, muito papel. Abraão já era velho e não se acostumou aos computadores. Se orgulhava de nunca, em toda a sua vida, ter um texto seu revisado por alguém. Soberano, achava os próprios erros e reescrevia sem parar. No final dos seus setenta anos, era autor de perfeitos quatro textos: uma bula de remédio, um soneto, um rótulo de detergente e um artigo sobre a queda do muro de Berlim. Claramente, o prazo de entrega de todos eles já tinha expirado.

Abraão seguia à risca o seguinte ditado, muito conhecido pelos representantes do sexo masculino: pode se falar tudo de um homem, menos que seja ruim de cama, de volante ou de texto. De cama, seu tempo já passara. De volante, sua coluna não mais permitia. De texto, bom, era a única coisa que o mantinha vivo. No último dia da sua existência, Abraão, como fazia todas as manhãs, preparou o café e sentou-se à mesa com seus quatro textos. Perfeitos, disse ele. Satisfeito, meteu os papéis no envelope e mandou para um amigo em quem confiava. O amigo, cansado de guerra, revisou aquelas construções simples e mandou de volta com um singelo bilhete.

Por muito tempo, nada se soube de Abraão. Dois meses depois, a polícia o encontrou debruçado sobre sua mesa de estimação. Sua mão direita estava pregada ao tampo com a própria caneta e sua boca, engasgada com dúzias de papeis. O reluzente bilhete de apenas três linhas estava na frente do corpo. Nele, o amigo o saudava e dizia: "é uma perfeição, mas faltou uma crase no último parágrafo do texto técnico da bula de remédio". Se pudéssemos imaginar a última fala de Abraão, certamente ela seria: se faltasse uma crase, mas o texto estivesse bom, eu até que sobreviveria".

Nenhum comentário: