quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O primeiro chapéu

O velho era comum, como muitos velhos que esperam a hora máxima nesta terra. O que o caracterizava no meio da multidão era seu chapéu Panamá. O que o fazia viver era sua mania de andar rumo ao infinito. Andar, era o que fazia; chapéu, era o que vestia. Dizem os livreiros da Praça Tiradentes, amigos do andarilho intelectual, que sua casa era o Beco dos Barbeiros. Revelam também que há muitos anos, o velho tinha se apaixonado pela mulher de um barbeiro que existia no lugar. Hoje, não existem barbeiros naquela pequena rua, muito menos as mulheres deles. 

Talvez desejando sonhar com o passado, o velho dormia por ali. Os guardas municipais que passavam sempre o encontravam adormecido sob o cobertor esfarrapado com as pernas em movimento. O velho tinha o poder de andar nos sonhos. De um dia para o outro, sem que as pedras portuguesas percebessem, os pés cansados não mais caminharam. O velho, da mesma maneira que surgiu, desapareceu. Dizem que chegou ao infinito, dizem que levava em seu colo a tal mulher do barbeiro.

Soube desta curta história no momento em que percebi que podia caminhar nos meus sonhos. Ainda não vejo o infinito, ainda não quero alcançá-lo. Ao menos, já comprei meu primeiro e único chapéu.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A adversativa e a crase

Mais perfeccionista que Abraão não existia. Pra piorar fez da escrita seu modo de ganhar a vida. Escreveu texto, poema, bula de remédio e rótulo de detergente. Vivia imerso em livros e papel, muito papel. Abraão já era velho e não se acostumou aos computadores. Se orgulhava de nunca, em toda a sua vida, ter um texto seu revisado por alguém. Soberano, achava os próprios erros e reescrevia sem parar. No final dos seus setenta anos, era autor de perfeitos quatro textos: uma bula de remédio, um soneto, um rótulo de detergente e um artigo sobre a queda do muro de Berlim. Claramente, o prazo de entrega de todos eles já tinha expirado.

Abraão seguia à risca o seguinte ditado, muito conhecido pelos representantes do sexo masculino: pode se falar tudo de um homem, menos que seja ruim de cama, de volante ou de texto. De cama, seu tempo já passara. De volante, sua coluna não mais permitia. De texto, bom, era a única coisa que o mantinha vivo. No último dia da sua existência, Abraão, como fazia todas as manhãs, preparou o café e sentou-se à mesa com seus quatro textos. Perfeitos, disse ele. Satisfeito, meteu os papéis no envelope e mandou para um amigo em quem confiava. O amigo, cansado de guerra, revisou aquelas construções simples e mandou de volta com um singelo bilhete.

Por muito tempo, nada se soube de Abraão. Dois meses depois, a polícia o encontrou debruçado sobre sua mesa de estimação. Sua mão direita estava pregada ao tampo com a própria caneta e sua boca, engasgada com dúzias de papeis. O reluzente bilhete de apenas três linhas estava na frente do corpo. Nele, o amigo o saudava e dizia: "é uma perfeição, mas faltou uma crase no último parágrafo do texto técnico da bula de remédio". Se pudéssemos imaginar a última fala de Abraão, certamente ela seria: se faltasse uma crase, mas o texto estivesse bom, eu até que sobreviveria".

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Variações do mesmo tema



Caí de uma vez. De joelhos, vi a parede que se apoiava na minha testa. A respiração faltou, suguei, pedi ar ao próprio ar, que me ignorou solenemente. Dois segundos. Vou morrer. Não. Não era a morte. No momento seguinte irrompe o choro. Lágrimas abundantes. Há pouco me faltava ar, agora há excesso de água. Molho a camisa. Enxugo o rosto. A parede força a testa e a testa força a parede. Formigas perdidas fazem a ponte e invadem meu rosto. Duas. Perdidas. Andando em caos. Os soluços atordoam o corpo. Incontrolável. O choro não termina e o corpo quica sobre os joelhos esfolados. Não consigo respirar. Desmaio. Acordo com um beija-flor que gosta de lágrimas salgadas.

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Tem horas que a respiração falta, a barriga encolhe, o rosto se contrai. As mão vão velozes à cabeça, tentam controlar o que não pode ser controlado. Do estômago vem uma onda, carregando todo o peso, reavivando a memória, formigando as pernas. A boca se abre, numa última tentativa de conter as lágrimas. Não estamos acostumados a chorar. E aquela água mágica e salgada, vinda direta do coração, explode e leva os que estão por perto.

Por muito tempo, acreditei que não choraria pela morte de alguém. Por duas vezes, mesmo diante da saudade avassaladora, contive as lágrimas, naturalmente. Elas se esconderam, covardes, em alguma curva do corpo. Achei que seria assim sempre. Garoto. Não era natural. Uma questão de tempo: eu era verde e não tinha maturidade para soluçar como uma criança. 

sábado, 11 de setembro de 2010

A morte e a morte do bom senso

Todos os dias, às 8:30 da manhã, o velho começava o dia em frente a estátua do Tiradentes. Para quem já o conhecia, não havia muitas surpresas. Quinze minutos antes, o velho despontava na esquina da Assembléia com a Primeiro de Março. Andando devagar, arrastando os pés cobertos de trapos, o velho avançava de cabeça baixa, curvado pelo volume grande de placas, papéis e sacos que carregava nas costas, pesado pelas dezenas de latas e garrafas presas ao seu cinto esfolado.

A pele curtida de sol acusava um ex-praiano. Os cabelos brancos e longos denunciavam os setenta e muitos anos, as mãos grossas não diziam nada, pois não se sabia há quanto tempo aquele velho andava perdido pelas ruas, nem qual havia sido seu ofício. O que se sabia, com certeza, era que a pontualidade estava sempre diante dele e o silêncio o acompanhava aonde quer que fosse.

As lendas da cidade geralmente nascidas em lugar nenhum e fortes como um sudoeste, já haviam adotado a estranha figura. Nos becos da cidade velha, diziam que já teve carros, casa, mulher e filhos. Nos puteiros mínimos e nas zonas vermelhas, seguiam firmes as famas de bom amante e ótimo bebedor. No porto, entre caixas e contêineres, se escutava que havia perdido tudo no jogo. Das rodas de samba e das gafieiras,a história dizia que ele tinha sido vítima de uma trama sórdida elaborada por falsos amigos.  

Ignorando os ventos, o velho, com a calma dos que já passaram, montava todos os dias sua cadeira de praia listrada de azul e branco. Sentado e relaxado, começava a armar sua tenda. Os que tiveram coragem de se aproximar perceberam que aqueles papéis que carregava não eram um lixo qualquer, mas sim galhardetes, faixas, fotos gigantes e  placas de campanhas políticas do passado. Dentro daquele mar de rostos e promessas, o velho respirava fundo e começava a montar seu teto.

Quando não chovia ou não havia o incômodo de passeatas e manifestações vazias, a tenda do velho surgia perfeitamente montada às nove da manhã. Satisfeito, o senhor esticava as pernas e guardava silêncio, embalado pelo barulho dos carros que guerreavam na sua frente. Aos que passavam, nada. Os olhos cansados miravam o infinito que, por vezes, terminava na lataria de um ônibus enguiçado.

Na frente da pequena cabana de papel, oscilando sobre a cabeça branca do dono, um grande cartaz de letras roubadas gritava aos cariocas a mensagem que o velho insistia em transmitir: “O bom senso está morto”. Nunca ninguém perguntou a ele o que queria dizer nem o porquê. Era um enigma de fácil resolução mas de difícil acesso. Pelo menos é o que pensavam aqueles que paravam para atravessar a rua e davam com aquele cenário. “Vai que o velho é maluco e tem uma arma”.

Mas ele não tinha, nem nunca tivera.

Por dez anos, ele repetiu o mesmo ritual. Por dez anos ninguém deu-lhe a mínima atenção. Na última semana, um carro desgovernado por um bêbado atingiu o velho e com ele, sua casa de promessas e rostos. O cidadão trôpego, que era deputado de reputação lustrosa, foi solto no mesmo dia. O velho, bem, o velho morreu, assim como o bom senso. No dia seguinte, saiu no jornal que o defunto era cabo eleitoral de candidatos da oposição da assembléia e que estava ali para causar desconforto.

Não, essa versão nunca foi aceita pelos becos, puteiros e rodas de samba. Não sabiam por que o velho estava ali, mas sabiam os motivos pelos quais não estava.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Toque da Morte

Quando a morte espreita, o pensamento desperta. Dei com ela outro dia, agachada atrás do muro que divide a cozinha da copa. No lugar da clássica velha sem rosto, vestida de preto, encontrei uma linda pequena fada rosa. Na altura dos meus joelhos, ela tinha pequenas asas transparentes, cabelos dourados presos em coque e pequenos cintilantes olhos azuis. Como eu sabia que era a morte? Apenas sabia.

Ela sobrevoou minha cabeça e sentou-se no meu ombro direito enquanto eu preparava o jantar. Disse algumas coisas em língua estranha e quando comecei a chorar – culpa da cebola – guardou silêncio. Ela era linda. Tão delicada que a pequena foice que carregava perdia a força do letal e tornava-se um instrumento mágico para preparar floridos jardins.

Mas as coisas mudaram, transformaram-se dentro da minha própria cabeça.

Quando cheguei a casa três dias depois, lá estava ela, sentada no sofá. Mais alta que eu e vestida pesadamente de negro, a Morte fumava tranquilamente meu cigarro. Com as pernas trêmulas, admito, vi as baforadas ganharem o ar, senti aquelas mão enrugadas de unhas vermelhas e, de relance, bati com seus pequenos olhos de gato faminto. A foice gigantesca estava apoiada num vaso de plantas. As plantas tocadas por ela estavam murchas. Ela acabou o cigarro, me olhou por longos minutos e se foi. Por dias não encontrei com ela.

Ontem, justamente ontem, depois do ataque fatal da Morte, eis que a fadinha me aparece novamente. Voando delicada, pediu licença e sentou-se no meu ombro esquerdo. Falando em português claro, pediu para que eu não me preocupasse; que assim era a vida; que ela um dia também viria me buscar. Eu estava com raiva, das mais vermelhas, e não a olhei no rosto.

A fadinha então se postou na minha frente e num piscar de olhos cresceu e transformou-se naquela velha odiosa de negro. Com movimentos horríveis, a velha senhora de olhos de gato encostou os sórdidos dedos de unhas vermelhas na planta que havia murchado na sua primeira visita. Depois me olhou sorrindo pelos olhos e desapareceu. Baixei a cabeça e, quando dei por mim novamente, a planta murcha estava estava de pé, florindo. Chorei sem cebola, como há muito não fazia.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Antídoto vermelho

Hipnotizado. Assim fiquei quando ela entrou no elevador. Não pude ver o rosto, mas pelas marcas do cotovelo e das mãos – que descansavam cruzadas sobre a bunda -, ela deveria ter uns trinta e poucos anos. O cabelo castanho liso ficou a um palmo do meu rosto e o perfume me tomou a consciência. Entrei em alfa e, discretamente, vislumbrei aquela deusa do cotidiano. O vestido verde deixava os ombros curtos e sardentos ao relento e sem defesa ao meu hálito plebeu que provavelmente a incomodou. A cintura era pequena e marcava o início de uma gigantesca bunda. Perfeita, ao menos quando protegida pelo vestido. As pernas de coxas grossas e a panturrilha bem definida completavam o quadro. Estava sob efeito de mágica das mais puras. Não era tesão, não era instinto, era devoção. E tudo se desfez no momento em que meus olhos baixos deram com o pé. Uma deusa não deveria pintar de vermelho as unhas do pé. Saí do elevador, sentindo-me traído. A partir daquele momento, sempre começo uma devoção olhando para os pés delas.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Oração para mim mesmo

Que eu tenha calma. Paciência para saber que o momento passa e os sentimentos se adaptam. Tranqüilidade para entender a minha condição e saber que a maioria das coisas fazem parte de qualquer vida e não só a minha. Sabedoria de, mais que entender, sentir que não sou especial por ter nascido. Sou mais um, apenas mais um, que fez opções certas e erradas. Equilíbrio para não fulminar os outros quando o sangue fala mais alto; o momento passa, a culpa não. Que eu tenha o objetivo de fazer a minha parte e mais e não desejar troco. E, finalmente, que eu tenha cabelos brancos para contar que fui feliz e rir das história boas e más pelas quais passei. 


Oração: s.f. discurso; sermão; fala.


Update: Como sempre, falar é fácil; difícil é fazer.