sábado, 23 de outubro de 2010

O vinho e a morte

A mulher das mãos falantes foi almoçar na casa de uns amigos franceses nos arredores de Paris. A casa branca era pequena, mas formosa. No grande jardim de flores amarelas, a família montou uma longa mesa, cercada por oito cadeiras de palha. Entre garrafas de vinho da safra de 1968 e caramujos da terra, via-se uma esplêndida toalha branca de rendas da Ilha da Madeira. O sol agradável e o cheiro de jasmim completavam o cenário.

As roupas brancas e simples da família engoliram as cores e dobras das apresentadas pela turista convidada. Brasileira e colorida, a mulher das mãos falantes se esforçou para acompanhar o alvoroço que o vinho francês causava e, como era boa com a fala das mãos, acompanhou atentamente as mãos dos outros. Se comunicou, bebeu e até se arriscou com os caramujos afogados no melhor molho da culinária francesa.

No auge do encontro, quando nada era francês e nada português. Alguém da porta da cozinha gritou: "un mort". A família imediatamente se levantou da mesa com precisão, como num ato ensaiado, e desapareceu dentro da pequena casa. A convidada, paralisada, foi informada por um francês cambaleante: a família cuida dos cadáveres da vila. A qualquer momento o serviço pode ser solicitado e as pessoas desta casa têm de cumprir com suas obrigações. É pela França, finalizou derrubando um cálice de champagne.

Pela França, a estupefada turista terminou a garrafa e saiu pela direita, sem se despedir da família que dentro da sala maquiava o corpo de uma velha senhora.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Guerra dos Trinta Anos


A cada discussão que tenho, a cada absurdo que ouço, chego mais perto da conclusão infeliz que ainda engatinhamos na política. A defesa da violência, o uso da mentira como argumento mais valioso, o inacreditável desrespeito às leis, e - principalmente - a inteira falta de pudor são apenas alguns dos fatores que confirmam nossa infantilidade no processo político.

Dizia um velho sábio que as leis são feitas de acordo com a cultura local e não o contrário. No Brasil, podemos tranquilamente melhorar a frase: as leis e a política são feitas de acordo com a cultura local. Metade do país não está preparado para um governo diferente daquele que temos hoje. São reflexos perfeitos do que temos em brasília. São milhões de lulinhas felizes que, se pudessem, fariam o mesmo o que está sendo feito.

Os países que hoje tem a democracia como característica forte passaram por guerras, por revoluções. O Brasil passa pelo PT. A conclusão depressiva é a de que precisamos de muito PT na veia para que a coisa melhore, para que as pessoas se desgarrem da política partidária e passem a defender os interesses do país, para que os indivíduos amadureçam e tenham o poder impressionante do pensar independente. Não sei se veremos - nossa geração - o virar desta página trágica na qual vivemos.

O PT tem um plano de poder e trabalhou nele por três décadas. O PSDB pensou, em longo prazo, e melhorou as engrenagens brasileiras. Não importa que eu tenha um celular, não importa que a Vale seja uma das primeiras empresas do mundo, não importa o Real, não importam os fatos. O que importa é que durante trinta anos foi dito e repetido que tudo estava errado, durante trinta anos as pessoas foram treinadas para ouvir as versões. O projeto de poder do PT se revela perfeito. Nada o abala. E se abalar, a contra-informação abafa. Somos 42% deste país (até agora) e, segundo o presidente, somos nada.

Enquanto os dados rolam, o PSDB terá de encontrar uma saída para o beco em que está: ou atua como o PT na base do quanto pior melhor e se iguala aos adversários, ou assume posições claras no jogo político, mesmo perdendo votos, mas recolocando a história na linha dos fatos. É um processo longo que talvez leve uns trinta anos.

sábado, 16 de outubro de 2010

Improvável

Dizia um ser mágico que todos nós deveríamos aceitar o seguinte desafio diário: antes do café da manhã, pensar em cinco coisas impossíveis. O impossível, entretanto, se juntou com o improvável, transformando coisas simples em atos distantes e espinhosos.  

Talvez tenha havido um tempo em que a magia era o éter e o impossível era a poesia sentida, o amor absoluto, a imagem de um cafuné num beija-flor. Tempo em que o impossível era conquistar a pequena do armazém, chegar à lua, conhecer um chinês. 

Sem que percebêssemos, as regras mudaram - algumas se inverteram - e tudo que está fora da rotina casa-trabalho passou a fazer parte do maravilhoso mundo do desconhecido que nunca será explorado. Sem dúvida é mais fácil não tentar.

Não há lado bom nessa história. Estamos encurralados. O possível é um quadrado 2x2 e o provável, uma quina gelada e iluminada como um aquário. Aqueles que tentam são tidos como loucos desvairados, imaturos incompreensíveis, amaldiçoados a caírem do cavalo, para a alegria dos felizes engessados.

Caminhando na rotina óbvia, pensei no desafio e nas cinco coisas impossíveis que me olham todos os dias insistentemente. Conversar com o mendigo que dorme perto do Buraco do Lume; dar um bom dia sereno para o vendedor que berra o preço da caixa de bis no meu ouvido; ligar para um dos telefones pregados dentro do orelhão e dizer para a mulher do outro lado que ela é fantástica; catar o lixo que insiste em ocupar a história do Arco do Teles; pegar todos os papéis que são oferecidos na rua, parando sempre e contribuindo com um sorriso.

Impossível não é. Apenas improvável.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Morte e Aplausos

Caminhava pela rua do Carmo como sempre fazia. Cigarro acesso, preso aos lábios pela saliva seca. Olhos fixos nos paralelepípedos irregulares. Ouvidos abertos para precaver-me de algum motorista nervoso. Todos os dias, o mesmo. Até aquele dia. 


De susto, um homem alto e bem vestido encostou o cano da pistola na minha barriga. Disse algo como "passa tudo". O cigarro assustado se jogou entre as pedras gastas e eu não pude responder. Tomado por um instinto, entrei em alfa. Não ouvia nada e só tinha olhos para aquelas mãos que ameaçavam minha vida. Num movimento que nunca seria meu, agarrei-lhe a mão e virei o cano gelado contra a barriga do assaltante. Nervoso, apertou o gatilho contra si mesmo. Tudo isso em horas minutos. Todo o movimento sem uma gota de suor.


Abraçado a mim, desabou sem vida, inerte. União de pó. De joelhos ao lado de um corpo que nunca havia visto, fiquei. Fechei-lhe os olhos e permaneci estátua não sei por quanto tempo. O povo, portador de curiosidade absurda, chegou-se em círculo perfeito tomando-me o ar. E eu tentando entender. E o povo a aplaudir.  

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A história das estátuas

A fé na beleza pura, absoluta, é uma ilusão do primeiro minuto da paixão avassaladora. Muitos vivem de muitos primeiros minutos e mantém a beleza absoluta viva, porém inalcançável. No momento em que é tocada, seja com a voz ou com o corpo, a beleza aciona um dispositivo de autodestruição. Pode viver por alguns meses, mas geralmente implode nos primeiros dias.

Há histórias, é verdade, de belezas que duraram anos. Belezas que envelheceram. Exceções do longo conto do amor. A regra de muitos apaixonados é deixar o belo distante e perfeito, protegido de qualquer mal entendido. Para estes, é preferível sentir intensamente aquela beleza – fluxo par da paixão momentânea – e deixá-la como um borrão em algum lapso perdido da memória.

Outros, desbravadores do próprio coração, acreditam que alguma beleza um dia durará para sempre e tentam alucinadamente capturá-la. Comemoram quando a tem, ou melhor, a retém por mais de um par de dias. No final, ela sempre se vai, agarrada as saias da paixão fugitiva. A depressão dura até que os olhos a encontrem em outro rosto que atravessa uma rua qualquer.

A explicação para a irracionalidade, não há, mas indícios de que a beleza não existe em si ganham força quando a experiência avança. Dizem os velhos sábios do travesseiro que a beleza é projetada pelos olhos de quem vê e morta pelo toque de quem ama. A beleza é um conjunto de lembranças, desejos e anseios projetados aleatoriamente pelo perdido de coração.

No momento em que a perfeição projetada encontra uma hospedeira, a toma para si e a transforma em uma estátua de virtudes e perfeição. Neste segundo, o que ama a sensação do nirvana, deixa a beleza em paz protegida por sua aura verde. E o que anseia, parte para uma ataque suicida, no qual buscará a si mesmo e encontrará outrem.

Dizem os sábios do travesseiro que na tentativa de eternizar a beleza, os antigos começaram a produzir estátuas.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O primeiro chapéu

O velho era comum, como muitos velhos que esperam a hora máxima nesta terra. O que o caracterizava no meio da multidão era seu chapéu Panamá. O que o fazia viver era sua mania de andar rumo ao infinito. Andar, era o que fazia; chapéu, era o que vestia. Dizem os livreiros da Praça Tiradentes, amigos do andarilho intelectual, que sua casa era o Beco dos Barbeiros. Revelam também que há muitos anos, o velho tinha se apaixonado pela mulher de um barbeiro que existia no lugar. Hoje, não existem barbeiros naquela pequena rua, muito menos as mulheres deles. 

Talvez desejando sonhar com o passado, o velho dormia por ali. Os guardas municipais que passavam sempre o encontravam adormecido sob o cobertor esfarrapado com as pernas em movimento. O velho tinha o poder de andar nos sonhos. De um dia para o outro, sem que as pedras portuguesas percebessem, os pés cansados não mais caminharam. O velho, da mesma maneira que surgiu, desapareceu. Dizem que chegou ao infinito, dizem que levava em seu colo a tal mulher do barbeiro.

Soube desta curta história no momento em que percebi que podia caminhar nos meus sonhos. Ainda não vejo o infinito, ainda não quero alcançá-lo. Ao menos, já comprei meu primeiro e único chapéu.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A adversativa e a crase

Mais perfeccionista que Abraão não existia. Pra piorar fez da escrita seu modo de ganhar a vida. Escreveu texto, poema, bula de remédio e rótulo de detergente. Vivia imerso em livros e papel, muito papel. Abraão já era velho e não se acostumou aos computadores. Se orgulhava de nunca, em toda a sua vida, ter um texto seu revisado por alguém. Soberano, achava os próprios erros e reescrevia sem parar. No final dos seus setenta anos, era autor de perfeitos quatro textos: uma bula de remédio, um soneto, um rótulo de detergente e um artigo sobre a queda do muro de Berlim. Claramente, o prazo de entrega de todos eles já tinha expirado.

Abraão seguia à risca o seguinte ditado, muito conhecido pelos representantes do sexo masculino: pode se falar tudo de um homem, menos que seja ruim de cama, de volante ou de texto. De cama, seu tempo já passara. De volante, sua coluna não mais permitia. De texto, bom, era a única coisa que o mantinha vivo. No último dia da sua existência, Abraão, como fazia todas as manhãs, preparou o café e sentou-se à mesa com seus quatro textos. Perfeitos, disse ele. Satisfeito, meteu os papéis no envelope e mandou para um amigo em quem confiava. O amigo, cansado de guerra, revisou aquelas construções simples e mandou de volta com um singelo bilhete.

Por muito tempo, nada se soube de Abraão. Dois meses depois, a polícia o encontrou debruçado sobre sua mesa de estimação. Sua mão direita estava pregada ao tampo com a própria caneta e sua boca, engasgada com dúzias de papeis. O reluzente bilhete de apenas três linhas estava na frente do corpo. Nele, o amigo o saudava e dizia: "é uma perfeição, mas faltou uma crase no último parágrafo do texto técnico da bula de remédio". Se pudéssemos imaginar a última fala de Abraão, certamente ela seria: se faltasse uma crase, mas o texto estivesse bom, eu até que sobreviveria".

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Variações do mesmo tema



Caí de uma vez. De joelhos, vi a parede que se apoiava na minha testa. A respiração faltou, suguei, pedi ar ao próprio ar, que me ignorou solenemente. Dois segundos. Vou morrer. Não. Não era a morte. No momento seguinte irrompe o choro. Lágrimas abundantes. Há pouco me faltava ar, agora há excesso de água. Molho a camisa. Enxugo o rosto. A parede força a testa e a testa força a parede. Formigas perdidas fazem a ponte e invadem meu rosto. Duas. Perdidas. Andando em caos. Os soluços atordoam o corpo. Incontrolável. O choro não termina e o corpo quica sobre os joelhos esfolados. Não consigo respirar. Desmaio. Acordo com um beija-flor que gosta de lágrimas salgadas.

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Tem horas que a respiração falta, a barriga encolhe, o rosto se contrai. As mão vão velozes à cabeça, tentam controlar o que não pode ser controlado. Do estômago vem uma onda, carregando todo o peso, reavivando a memória, formigando as pernas. A boca se abre, numa última tentativa de conter as lágrimas. Não estamos acostumados a chorar. E aquela água mágica e salgada, vinda direta do coração, explode e leva os que estão por perto.

Por muito tempo, acreditei que não choraria pela morte de alguém. Por duas vezes, mesmo diante da saudade avassaladora, contive as lágrimas, naturalmente. Elas se esconderam, covardes, em alguma curva do corpo. Achei que seria assim sempre. Garoto. Não era natural. Uma questão de tempo: eu era verde e não tinha maturidade para soluçar como uma criança. 

sábado, 11 de setembro de 2010

A morte e a morte do bom senso

Todos os dias, às 8:30 da manhã, o velho começava o dia em frente a estátua do Tiradentes. Para quem já o conhecia, não havia muitas surpresas. Quinze minutos antes, o velho despontava na esquina da Assembléia com a Primeiro de Março. Andando devagar, arrastando os pés cobertos de trapos, o velho avançava de cabeça baixa, curvado pelo volume grande de placas, papéis e sacos que carregava nas costas, pesado pelas dezenas de latas e garrafas presas ao seu cinto esfolado.

A pele curtida de sol acusava um ex-praiano. Os cabelos brancos e longos denunciavam os setenta e muitos anos, as mãos grossas não diziam nada, pois não se sabia há quanto tempo aquele velho andava perdido pelas ruas, nem qual havia sido seu ofício. O que se sabia, com certeza, era que a pontualidade estava sempre diante dele e o silêncio o acompanhava aonde quer que fosse.

As lendas da cidade geralmente nascidas em lugar nenhum e fortes como um sudoeste, já haviam adotado a estranha figura. Nos becos da cidade velha, diziam que já teve carros, casa, mulher e filhos. Nos puteiros mínimos e nas zonas vermelhas, seguiam firmes as famas de bom amante e ótimo bebedor. No porto, entre caixas e contêineres, se escutava que havia perdido tudo no jogo. Das rodas de samba e das gafieiras,a história dizia que ele tinha sido vítima de uma trama sórdida elaborada por falsos amigos.  

Ignorando os ventos, o velho, com a calma dos que já passaram, montava todos os dias sua cadeira de praia listrada de azul e branco. Sentado e relaxado, começava a armar sua tenda. Os que tiveram coragem de se aproximar perceberam que aqueles papéis que carregava não eram um lixo qualquer, mas sim galhardetes, faixas, fotos gigantes e  placas de campanhas políticas do passado. Dentro daquele mar de rostos e promessas, o velho respirava fundo e começava a montar seu teto.

Quando não chovia ou não havia o incômodo de passeatas e manifestações vazias, a tenda do velho surgia perfeitamente montada às nove da manhã. Satisfeito, o senhor esticava as pernas e guardava silêncio, embalado pelo barulho dos carros que guerreavam na sua frente. Aos que passavam, nada. Os olhos cansados miravam o infinito que, por vezes, terminava na lataria de um ônibus enguiçado.

Na frente da pequena cabana de papel, oscilando sobre a cabeça branca do dono, um grande cartaz de letras roubadas gritava aos cariocas a mensagem que o velho insistia em transmitir: “O bom senso está morto”. Nunca ninguém perguntou a ele o que queria dizer nem o porquê. Era um enigma de fácil resolução mas de difícil acesso. Pelo menos é o que pensavam aqueles que paravam para atravessar a rua e davam com aquele cenário. “Vai que o velho é maluco e tem uma arma”.

Mas ele não tinha, nem nunca tivera.

Por dez anos, ele repetiu o mesmo ritual. Por dez anos ninguém deu-lhe a mínima atenção. Na última semana, um carro desgovernado por um bêbado atingiu o velho e com ele, sua casa de promessas e rostos. O cidadão trôpego, que era deputado de reputação lustrosa, foi solto no mesmo dia. O velho, bem, o velho morreu, assim como o bom senso. No dia seguinte, saiu no jornal que o defunto era cabo eleitoral de candidatos da oposição da assembléia e que estava ali para causar desconforto.

Não, essa versão nunca foi aceita pelos becos, puteiros e rodas de samba. Não sabiam por que o velho estava ali, mas sabiam os motivos pelos quais não estava.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Toque da Morte

Quando a morte espreita, o pensamento desperta. Dei com ela outro dia, agachada atrás do muro que divide a cozinha da copa. No lugar da clássica velha sem rosto, vestida de preto, encontrei uma linda pequena fada rosa. Na altura dos meus joelhos, ela tinha pequenas asas transparentes, cabelos dourados presos em coque e pequenos cintilantes olhos azuis. Como eu sabia que era a morte? Apenas sabia.

Ela sobrevoou minha cabeça e sentou-se no meu ombro direito enquanto eu preparava o jantar. Disse algumas coisas em língua estranha e quando comecei a chorar – culpa da cebola – guardou silêncio. Ela era linda. Tão delicada que a pequena foice que carregava perdia a força do letal e tornava-se um instrumento mágico para preparar floridos jardins.

Mas as coisas mudaram, transformaram-se dentro da minha própria cabeça.

Quando cheguei a casa três dias depois, lá estava ela, sentada no sofá. Mais alta que eu e vestida pesadamente de negro, a Morte fumava tranquilamente meu cigarro. Com as pernas trêmulas, admito, vi as baforadas ganharem o ar, senti aquelas mão enrugadas de unhas vermelhas e, de relance, bati com seus pequenos olhos de gato faminto. A foice gigantesca estava apoiada num vaso de plantas. As plantas tocadas por ela estavam murchas. Ela acabou o cigarro, me olhou por longos minutos e se foi. Por dias não encontrei com ela.

Ontem, justamente ontem, depois do ataque fatal da Morte, eis que a fadinha me aparece novamente. Voando delicada, pediu licença e sentou-se no meu ombro esquerdo. Falando em português claro, pediu para que eu não me preocupasse; que assim era a vida; que ela um dia também viria me buscar. Eu estava com raiva, das mais vermelhas, e não a olhei no rosto.

A fadinha então se postou na minha frente e num piscar de olhos cresceu e transformou-se naquela velha odiosa de negro. Com movimentos horríveis, a velha senhora de olhos de gato encostou os sórdidos dedos de unhas vermelhas na planta que havia murchado na sua primeira visita. Depois me olhou sorrindo pelos olhos e desapareceu. Baixei a cabeça e, quando dei por mim novamente, a planta murcha estava estava de pé, florindo. Chorei sem cebola, como há muito não fazia.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Antídoto vermelho

Hipnotizado. Assim fiquei quando ela entrou no elevador. Não pude ver o rosto, mas pelas marcas do cotovelo e das mãos – que descansavam cruzadas sobre a bunda -, ela deveria ter uns trinta e poucos anos. O cabelo castanho liso ficou a um palmo do meu rosto e o perfume me tomou a consciência. Entrei em alfa e, discretamente, vislumbrei aquela deusa do cotidiano. O vestido verde deixava os ombros curtos e sardentos ao relento e sem defesa ao meu hálito plebeu que provavelmente a incomodou. A cintura era pequena e marcava o início de uma gigantesca bunda. Perfeita, ao menos quando protegida pelo vestido. As pernas de coxas grossas e a panturrilha bem definida completavam o quadro. Estava sob efeito de mágica das mais puras. Não era tesão, não era instinto, era devoção. E tudo se desfez no momento em que meus olhos baixos deram com o pé. Uma deusa não deveria pintar de vermelho as unhas do pé. Saí do elevador, sentindo-me traído. A partir daquele momento, sempre começo uma devoção olhando para os pés delas.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Oração para mim mesmo

Que eu tenha calma. Paciência para saber que o momento passa e os sentimentos se adaptam. Tranqüilidade para entender a minha condição e saber que a maioria das coisas fazem parte de qualquer vida e não só a minha. Sabedoria de, mais que entender, sentir que não sou especial por ter nascido. Sou mais um, apenas mais um, que fez opções certas e erradas. Equilíbrio para não fulminar os outros quando o sangue fala mais alto; o momento passa, a culpa não. Que eu tenha o objetivo de fazer a minha parte e mais e não desejar troco. E, finalmente, que eu tenha cabelos brancos para contar que fui feliz e rir das história boas e más pelas quais passei. 


Oração: s.f. discurso; sermão; fala.


Update: Como sempre, falar é fácil; difícil é fazer.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Candidato por um post



Uma das coisas que me incomodam nesta campanha 2010 é me chamarem de filho. Não sou filho de ninguém, além do MEU pai e da MINHA mãe. Quero o óbvio e o óbvio é meu de direito, não é favor. Pensando nisso, incorporei o candidato, subi no meu banquinho virtual e escrevi o texto abaixo:

"Eu acredito na capacidade de cada um de vocês. Não gosto desta idéia de o presidente ser pai, ser mãe. O presidente tem de ser um parceiro, alguém que sabe o que você precisa e que fará o máximo para que você cresça, para que você melhore. Ninguém neste país é incapaz. Não acredito que você seja. Por isso, trabalharmos juntos é meu maior projeto de governo. Outra coisa: ter escola, hospital, segurança não é favor de nenhum governo. É direito seu! Quero que todo mundo possa deixar seus filhos na escola e ter certeza que a educação é de boa qualidade, possa ir a um hospital se precisar. Esse é o papel do presidente, garantir que você tenha o que precisa para fazer seu próprio caminho. Falam por aí que o brasileiro precisa de uma mãe. Não acredito. O brasileiro é inteligente, sabe encontrar soluções. O brasileiro precisa de um parceiro. E eu estou pronto e quero ser seu parceiro."

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Guerra

É guerra. Naquele dia precisei sair na Central. Como qualquer cidadão, postei-me diante da porta, esperando o momento de desembarcar. O trem saiu da escuridão do túnel e foi iluminado pela estação e logo sombreado pela multidão. Cerca de 40 pessoas aguardavam para entrar no trem, do outro lado da porta na qual eu estava. Como carros engatados, elas se moviam em ondas curtas. Os pés fincados no chão e o corpo mareando pra frente e pra trás, hipnotizados. Fiz sinal, garoto, de que gostaria de sair. Ninguém tomou conhecimento. As portas abriram, forcei a saída, mas fui carregado para o meio do vagão. Os que entravam, gritavam, se divertiam com a própria tragédia. E eu queria sair. Avancei dois passos, derrubei uma senhora. Quando estendi minha mão para ajudá-la, retrocedi mais quatro passos. Decidi entrar no jogo. Empurrei, soquei, armei meus cotovelos. Me olharam de cara feia, eu olhei de cara feia. E quando o apito anunciava o fechamento das portas, consegui. Fui expelido do trem. Pensei, são sardinhas entrando na lata.

No final do dia, quando voltei à estação, mudei minha conclusão. Naquele momento, era eu a empurrar e entrar no vagão. Não são sardinhas. Somos sardinhas.

sábado, 28 de agosto de 2010

Laranjada no copo de papel (quando começamos a passar)

Durante anos fui assíduo. Depois de almoçar, ia todos os dias tomar uma laranjada no copo de papel. O boteco ficava na Buenos Aires, quase com Primeiro de Março - a rua onde o imperador desfilava sua barba.

O lugar não era sujo, tampouco limpo. Uma bancada de ferro e vidro protegia alguns salgados anteontinos espalhados estratégicamente para ocupar todo o espaço. O senhor, dono do estabelecimento, devia estar na casa dos sessenta e aparentava estar ali desde sempre. Com habilidade, sacava o copo de papel de um tubo, o encaixava num suporte de metal e abaixava a alavanca. O suco vinha com força, de algum lugar entre as ruínas de uma oca dos Guarani e o chão. Era imperdível.

Pois bem, voltei ao local semana passada, seco por uma laranjada. E encontro um aquário. Explico, o velho do suco passou o ponto e os novos donos resolveram modernizar. Maldita modernidade. O lugar era literalmente um aquário. Luzes brancas no lugar das velhas amarelas, paredes e chão de azulejos claros e com textura no lugar do chão preto com bolinhas brancas e das paredes sujas, uma reluzente bancada de mármore substituindo o vidro dos salgados anteontinos.

Perguntei se serviam suco. A atendente de uniforme de aeromoça disse que sim e sacou um copo de plástico. Fiquei nervoso, admito e, meio sem jeito, perguntei se havia a possibilidade de me servir a laranjada no copo de papel. Ela, jovem, pintada, com um logotipo qualquer estampado na testa, me olhou estranho e mostrou os velhos e bons copos de papel. Se justificou: disse que ninguém mais pedia aquilo. "Aquilo". Pelo menos a alavanca ainda existia.

Os clientes sarados vindos de alguma academia e três garotas provavelmente da quatro por quatro me olharam com desdém e eu molhei minha barba da mesma maneira que fazia quando não se podia ver as poças de suco no velho chão preto com bolinhas brancas.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Forte

Ele sempre esteve lá. Imponente, gigante e preto. Os locais chamavam a estrutura de Black Fort. Diz a lenda que já foi usado por guerreiros da Babilônia, espartanos sedentos por sangue, putas sonhadoras e órfãos de padres safados.

Hoje é apenas uma sombra que não deixa a grama crescer no lado sul. Ele sempre esteve lá e eu nunca tive coragem de chegar perto. Ouvia ou imaginava ouvir o grito dos guerreiros, os gemidos de amores impossíveis das putas, o choro dos órfãos. Nunca fui.

Velho, me permiti conversar com as vozes e subir as escadas da ruína. Abri os ouvidos e ignorei as mensagens e reclamações. Subi 473 lances de escada, tropecei 12 vezes e enfiei minha bengala em quatro buracos. No final, cheguei ao alto da torre norte, a mais alta e bela do forte.

Lá de cima conclui o óbvio. O panorama era lindo, mas o forte era realmente preto. Por algum motivo acreditava que quando chegasse lá, iria me deparar com outra cor, talvez branca, laranja ou até lilás. O óbvio machuca, o óbvio é triste. Desci e me afastei o máximo que pude.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Milagres subornados

Deus disse: venham a mim. Ninguém se moveu. Mandou seu filho. Na arrogância adolescente, disse: levanta-te e anda. Ninguém levantou, muito menos andou. Tentou mais uma vez: os que não podem ver, abram os olhos e contemplem. Mas ninguém viu nada por detrás das cataratas. Atrás da cortina azul de bordados borboleta, o diabo prendia o riso. Deus cansou, pediu uma água com gás e foi fumar um cigarro no jardim. Seu filho, ainda novo, se trancou no quarto e se perdeu nas músicas do iPod. O diabo gargalhava. Ria, pois depois que o todo poderoso saiu da sala, o tetraplégico andou e o cego viu. A primeira coisa que fizeram foi cobrar a parte deles no acordo. O diabo pagou rindo.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Minutas de uma terça



Sonho mal dormido

Alice apareceu no meu sonho. Falou de coelhos de terno, chapeleiros malucos, cartas que bradavam espadas. Disse que pensava em cinco coisas impossíveis todos os dias antes do café da manhã e que podia aumentar e diminuir. Afirmou que um país repleto de maravilhas existia sob alguma árvore.

Esqueceu-se, porém, que o sonho era meu. Num piscar de olhos, fiz com que desaparecesse e levasse com ela aquelas idéias. Voltei a ter meu sonho de volta. Voltei aos móveis de madeira velha e o rádio tocando a JB FM. Adormeci dentro do sonho.

A questão das portas

O hall tinha três portas fechadas. Uma de madeira; a segunda, sanfonada e a terceira, toda de ferro. Só era possível abrir uma, apenas uma. Uma escolha, um momento, uma atitude. Escolhi a sanfonada. Fui brega até no último momento.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Sujeito verbal

Descobri que estava apaixonado exatamente no momento em que ela se foi. Triste, porém verdade. Enquanto dividíamos a cama e o ar, ficávamos em um jogral de amor e ódio. Parece normal, acredito que seja, mas ainda assim é diferente. Daí, deixe-me pensar sobre o assunto e acabei caindo no labirinto do significado das palavras.

A primeira grande questão e, acredito a mais básica e importante, seria: qual a diferença entre sentir, sofrer e entender? Sentir uma frase ou sentir alguém talvez seja quando o coração e a mente entram no processo juntos. Entendimento é cérebro e só. Sofrimento, para o bem ou para o mal, apenas coração. Compartilhar o sentimento é consequência imediata para aqueles que sentem e que sofrem. Como sentir, como sofrer? Não tenho a menor idéia.

Voltando a história. Com ela junto de mim, sentia amor. Sentimento linear, calmo, constante. Paralelo ao amor, um tipo brando de ódio, conhecido como implicância. Implicância esta que, por vezes, cruzava a linha do amor. Nada grave, tudo previsto no roteiro de um relacionamento. Depois de um certo tempo, o sentimento amor passou a ser entendimento amor. E aí só razão.

Quando ela fechou a porta e deixou-me sozinho, senti imediatamente paixão. Sentimento plano, nervoso, ansioso, voraz. A imagem do rosto dela impregnou minha retina de forma que a via fechando ou não os olhos. Suava, doía meu estômago. Não sabia se tinha fome ou sono. Se queria sair ou dormir. A paixão sentida revirava meu corpo. Era sentimento puro, era sofrimento puro, só coração.

E tive que esperar. Dentro do chavão corretíssimo, só o tempo poderia resolver. E resolveu. O sofrer deu lugar ao sentir que, por fim, foi substítuido pelo entender. Longo processo de verbos para acalmar o sujeito. Evidentemente sabia e sei que apenas uma história havia terminado. Por mais que, às vezes, comece a suar deseperadamente.

terça-feira, 20 de julho de 2010

A bicicleta

Foi rápido, muito rápido. Estava fumando um cigarro, pensativo. Ela passou pedalando uma bicicleta verde-abacate. Linda, morena, cabelos lisos, pele fresca, molhada do suor do mar. A visão impediu que a tragada se completasse e tonteei.

Ela parou, me olhou com aqueles olhos grandes de esquilo e perguntou meu nome. Respondi. Jantamos. Almoçamos. Nos beijamos. Fizemos sexo. Conheci os pais dela. Ela, os meus. Rimos. Bebemos. Brindamos. Viajamos. Nos casamos. Brigamos. Fizemos amor. Tivemos o primeiro filho. Brigamos. Às pazes. Viajamos. Tivemos o segundo filho. Compramos nossa casa. Quase nos divorciamos. Fizemos o justo. Nos apaixonamos. Em seguida esquecemos. Conversamos. Mudamos. Viajamos. Brigamos. Não fazíamos mais nada. Envelhecemos. Vimos fotos. Viramos fotos. Morremos. Não lembrávamos o nome um do outro.

Quando a tragada enfim saiu por minhas narinas, a bicicleta verde-abacate já estava longe. Ela era apenas uma sombra. Pra comemorar o que não foi, acendi o segundo cigarro.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Cada um com seu problema

Para alguns a origem da vida é um grande problema. Para outros, saber se o mês vai caber no orçamento é o principal. Existem, ainda, aqueles que estão entre a existência ou não de um ser divino e tantos mais que perdem noites para dar um final feliz a uma equação. Mas nada se compara ao assunto que ocupa a cabeça do nosso José.

José, homem simples, se orgulha de ter pelo menos 15 apelidos. Os mais usados são os clássicos zé, zeca e jão. Zeca trabalha desde adolescente como técnico instalador de uma operadora de TV a cabo. Para ele as grandes questões do mundo se resumem a apenas uma: por que é permitida a produção de conduítes de uma polegada?

Enquanto o motorista da empresa reclama da péssima engenharia de trânsito da cidade, Jão tenta calcular o tempo de atendimento para cada instalação segundo a grossura do conduíte. O de meia polegada é o pior e, dependendo do tempo de uso e da sujeira, Zé pode perder até três horas. Mas, se o conduíte for novo e tiver duas polegadas, o paraíso se faz presente e ele termina o serviço em minutos.

O próximo passo de José é se candidatar a vereador para propor uma lei que proíba a produção de conduítes com menos de duas polegadas. Jão acha que dá pra ganhar. Zeca acha que com o problema resolvido, a vida perderia a graça. E Zé, bom, Zé está imerso em cálculos e conduítes e não pode dar nenhuma opinião.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

João Paciência

João tinha paciência. Tanta paciência que era conhecido como sábio. Não por saber muitas coisas, mas por nunca, jamais, perder a bendita paciência. E assim João fez sua fama. Chegou a tal ponto que era procurado por faladores de todo o país. Muitos iam para falar, simplesmente. Soltavam seqüências de palavras como numa terapia a base de cerveja ( João tinha o hábito de servir a gelada para seus convidados intrusos). Outros iam apenas para testar aquele santo. Xingavam, falavam os maiores absurdos, tentando a todo custo fazê-lo perder a calma. Mas nunca aconteceu.

A lenda de João Paciência, como era conhecido o cidadão, era e ainda é tão forte que um dia mais de 200 carros estacionaram nos arredores da casa dele. Não eram faladores desesperados em busca de um ouvido paciente, mas um potente buzinaço. Dizem que o evento ensurdecedor durou 30 minutos e, ao final, João Paciência foi à varanda e acenou placidamente.

Toda esta paciência durou 30 anos. Quando fez 31, João Paciência tentou cancelar uma conta de celular. Na quinta transferência entre atendentes, João explodiu. É possível que a casa dele ainda exista e que o telefone ainda esteja fora do gancho. É certo que sob a porta, pilhas de contas do tal celular estejam amontoadas. O que importa, entretanto, é que a paciência nunca mais seria a mesma. A paciência verdadeira, agora, era apenas parte de uma lenda.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A corda

A corda

A corda sempre arrebenta. No entanto, sempre acreditamos e sempre vamos acreditar que podemos esticá-la um pouco mais. Desejamos que nosso cotidiano seja um filme, melhor, que tenha trechos de filmes. Neste sentido, nunca morreremos, nunca sofreremos um acidente e, caso aconteça, servirá apenas de desculpa para ganhar uma linda cicatriz. O problema é que, infelizmente, o óbvio trágico sempre acaba acontecendo. É fato. Quando você acha que vai dar merda é porque provavelmente vai dar merda. Mas o que fazemos, em geral? Pagamos pra ver e a merda, sempre sorridente, acontece. Sinto muito, não tem volta.

O vício

Chegam então as lamentações juntos com os "se's". Ah se eu não tivesse...Tarde, demasiado tarde. A vida continua e com ela a merda nos espreita. O que fazemos? Por pura diversão ou seja lá o que for isso, chamamos por ela, procuramos por ela. Sabemos que, de novo, vai dar merda, mas repetimos o erro, só pra ver se daria mesmo. Ah! Tenha paciência. E esse vício pega pior que cigarro.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Contribuição dos 92 anos

Sabe a coluna Prestes? Então, eu estava lá. Tinha oito anos é verdade, mas estava lá. Sabe a Revolução de 1930? E o Estado Novo? É, fui contra, briguei e fui preso, torturado pelas minhas idéias. Aliás, falando nisso, nunca entendi o porquê de chamarmos revolução aquela de 30 e golpe o de 64. Ou tudo é golpe ou tudo é revolução. Mas isso não importa.

Vontade de brigar nunca me faltou e eu era apaixonado. A discussão política era um vício. Fazia com prazer. Nunca tive tempo de namorar, de me envolver. O que eu queria era mudar o mundo. O resto era assunto da pequena burguesia.

O tempo passou, mas eu não. Outra conclusão fantástica. Pessoas não mudam, no máximo afinam o discurso. Nem isso eu fiz. E fui exilado em 64, voltei com a anistia, fui contra Tranquedo e o colégio eleitoral, mas no final fiz campanha para ele. Fui pra rua pelo Lula e vi Collor ganhar. Quando surgiu a oportunidade, ajudei a derrubar o irritado presidente. Tinha 74 anos e não fugi das cores no rosto.

Depois vi Itamar, vi FHC. E, finalmente, vi Prestes ganhar a eleição. E pra quê? Pra simplesmente descobrir que durante toda a minha vida acreditei no que eu queria acreditar. Me escondi da verdade, fugi da responsabilidade de tentar resolver a minha vida. E, a verdade, não há melhor solução para fugir de si mesmo do que propor a mudança dos outros.

O mundo não mudou, só afinaram os discursos. Eu não mudei e só ficaram as paredes. Queria ter morrido antes de 2002, mas não deu. Agora, Inês é morta e eu só posso esperar o momento de encontrar-me com ela.

Terça Escura - Anotações

Não cansa, jamais.
Estivera morto, estorvo
na terra de satanás.

Mas não, vivo da silva
caminha turvo sob o sol
em constante curvo bemol

Não parte, jamais.
Ainda existe, simples barco
latejando no muro do cais

E assim foi, é e será
sombra triste de morte
ressuscitada todo dia
por pura falta de sorte

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Vida,
verde e quente.
Não quero.
Vida,
preta e fria.
Espero.
E no final
atrofia
e não saio do lugar

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Espelhou!

O desafio é claro e direto. É o último lance e ele quer a minha melhor. Pede três, o que esvazia minha mão. Aceito com o orgulho dos nove anos. No chão, ele de pernas abertas, corpo curvado, mãos unidas, se prepara para o lance final. Meus olhos fixos, esperam um erro pouco provável. Ele é bom, muito bom. Vive fazendo aquilo. Deito, quero ver o lance por outro ângulo na esperança de notar alguma irregularidade.

As mãos de meu adversário sobem e descem em câmera lenta. Por um segundo não vejo o objeto que defendi por tantas rodadas. A lufada de vento se forma fazendo com que rostos girem e flutuem num céu de 15 centímetros. Rodam as seis, juntas. Putz, as seis cairiam para o mesmo lado. 50 a 50. Espero. Diacho de demora. Ei! Uma se soltou. É ela. Cinco caem viradas pra cima. Fariam parte do plantel de outro. A desejada faz manha, roda um pouco mais e, na descida, esbarra na perna dele. Espelhou! E junto com a espelhada, tia Jurema termina o jogo. Hora de almoçar.

Frieza marcada

O mundo fica muito mais frio quando o inverno tem hora marcada pra chegar. Segundo o jornal da televisão, a estação da neve começou às 8:27 da manhã de hoje.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O caso das fitas (parte 1)

Tinha tudo armazenado. Pilhas de fitas de vídeos dentro do armário. Todas com etiquetas que nada mais mostravam que siglas. Algumas ostentavam mj10, md09, mn06, mmç08. Todas feitas com letras góticas e caneta tinteira. Roberto, o dono desta coleção, sempre foi considerado estranho por seus colegas, já que nunca teve amigos. Tinha modas passageiras; já colecionara pilhas, tampas de canetas, cuecas furadas. Há cinco anos, a mania era cuidar das tais fitas.

Era um ser realmente peculiar. Todos os dias, por volta das sete da noite, quando chegava do trabalho, ele, depois de beijar a mulher, se trancava no quarto por exatos cinco minutos. Sozinho, escancarava o armário, que vivia trancado com a ajuda de mais de três cadeados, e começava a admirar sua coleção de fitas. Baixinho, sem muita graça, considerado um homem feio pela maioria das mulheres, exceto sua mãe e sua avó, aquele era o único momento em que se sentia realmente feliz. Olhar aquela infinidade de fitas era um prazer imenso.

Sua mulher, Elza, companheira e dedicada, tentava entender aquela pequena loucura. Não havia onde assisti-las já que não tinham aparelho para aquele tipo de vídeo. Não entendia também de onde brotavam as fitas, nem lembrava quando começaram a encher o armário. Tinha perguntado ao marido sobre aquilo uma dezena de vezes, mas as respostas sempre foram grossas seguidas por dias de péssimo humor. No final das contas, conformou-se com a extravagância e só se lembrava daquilo quando via, pela fechadura, seu marido sentado no chão de pernas cruzadas olhando a tal coleção.

No natal seguinte ao começo daquela mania, Elza deu de presente para Roberto um aparelho especial para que pudessem, enfim, apreciar as fitas – se possível juntos. Roberto com o sorriso de dentes curtos e amarelos agradeceu e deixou o aparelho cair. Ele nunca foi um bom ator, e a mulher percebeu que ele quase jogara no chão o presente. Espatifado, não teve tempo de ser útil; nenhuma das fitas rodou. A partir daquele momento, a curiosidade tomou a cabeça de Elza que faria de tudo para descobrir o que significava aquela proteção patológica.

Num dia de janeiro, depois que Roberto saiu para trabalhar, a mulher decidiu tomar uma atitude concreta para desvendar aquele grande mistério. Quando a tarde chegou, Elza chamou um chaveiro. Era óbvio. Era a solução para o problema que não a deixava mais dormir. Enquanto esperava a campanhinha tocar, Elza começou um bolão consigo mesma: pornografia? Jogos de futebol? Horário eleitoral dos anos 80? Não demoraria para ela descobrir.

Às retas

Um obrigado é palavra fácil,
um tanto descompromissada
assim como um desculpa
balbuciado e ágil,
como o que não quer nada.

Muito mais difícil e verdadeiro
é uma boa risada rasgada,
é um silêncio de admiração
ou uma brincadeira daqueles que são

mais do que palavras
mais do que apertos de mão
aqueles que se abraçam e que sentem
que vão e que voltam,
mas que sempre serão

Sentimentos sem nome,
isso é o que buscamos,
isso é o que temos,
protegidos de qualquer porém,
de qualquer senão.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Memória

Érico saiu rolando escada abaixo e caiu de pé já correndo pra porta de vidro quebrou com o ombro e rolou rua afora já roubando a bicicleta anônima cantando pneu no sereno do asfalto avançou o sinal sem frear ladeira abaixo vento na fuça cantando iron maiden a plenos pulmões xingando a velha a criança o mendigo o polícia o esquilo a porra toda cruza a avenida roleta russa sobrevive continua esquece e lembra o porquê da urgência três vezes e para.

Ofegante.

Se atira na frente do Santana 94 saca o 38 e

Arranca o coroa do carro chuta o viado (viado! viado!) no estômago sem pressa chuta de novo ri de nervoso moto-contínuo se arrepende e chora no volante treme grita limpa o para-brisa tchum tchum tchum tchum atropela o cachorro vadio acelera sem rumo perdendo controle na curva do parque retoma o controle os sentidos se esquece amolece reduz, reduz, reduz,, para.

Érico esquece.

Que sorte.

Portas Todas

Como abri portas. Mais: como perdi tempo na frente delas pensando se valeria à pena abri-las. Em algumas, vi luz saindo pela fresta e fui sem medo. Outras, abri no impulso e me arrependi depois. O que mais me marcou, porém, foram aquelas que tinham uma parede por detrás. Eram portas de mentira. Com maçanetas, pesadas, mas que guardavam o nada. Muito diferente de guardar o vazio. Estas foram muitas. O vazio. Chegava a entrar, procurar nas quinas, sentar e esperar para concluir que realmente não havia nada. Quando menos esperava, abri uma porta óbvia e ali mesmo encontrei o que buscava. Desde então, passeio pelos corredores e admiro as portas que não desejo mais abrir. E a vida virou um grande passeio.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Tranqueira

Quando a bola quicou na sua frente, ele perdeu a chance de marcar o gol. Depois, só recuou. Só foi se dar conta da real situação no momento em que estava de goleiro, parado, esperando que os outros lhe dessem um pouco de emoção. Mas nunca lhe davam. Ali ficou esperando uma lufada de coragem que o impelisse a abandonar o campo, ou que alguém cansasse e pedisse a posição. Nunca aconteceu. No meio do jogo, desejou seu fim. Desejou tanto que o tempo quase parou. Quando o fim se transformou em algo tangível, ele resolveu. Avisou a todos que ia fazer o que tinha vontade. Mas como aquilo tinha sido dito tantas vezes sem se transformar em realidade, ninguém deu bola. Entretanto, daquela vez era pra valer. Sem prefácio, começou a correr, atravessou o gramado, marcou o gol e saiu de campo. Nunca mais ninguém soube dele. Que ele está feliz é a única certeza daqueles que ficaram pra trás.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Diário de um desmemoriado (parte final)

Minha idéia era construir uma nova história e me afastar de uma que não era a minha. Depois que deixei o prédio onde morava quando tinha memória, andei muito. Da Tijuca fui ao Centro, do Centro ao Porto, do Porto à Niterói. Caminhando, devagar. Sem hora, sem relógio. Observado paisagens que, mesmo velhas, eram inteiramente novas. Descobrindo gostos, cheiros e redefinindo o que gostava e o que não.

Andando, visitei lugares desertos onde o silêncio me fazia falar sem parar com o objetivo de ocupar todo o ar a minha volta. 
 Me perdi em grandes metrópoles onde o ar estava permanentemente ocupado por vozes e sons que me mantinham calado. Fui e voltei. Conheci e me despedi. Me embriaguei e vomitei. Gargalhei e chorei. Fiz tudo o que me deu vontade e fui feliz.

Fui tão feliz que por semanas esquecia que um dia tinha sido outra pessoa. Com uma vontade inquebrável fiz todo o possível para manter aquela ante-vida bem distante. Desde o dia em que conheci meus pais e minha mulher, não voltei a vê-los ou a falar com eles. Me fazia bem saber que não havia volta. Pelo menos, assim eu imaginava.

Um dia, resolvi subir uma trilha atrás do barulho de água que prometia um bom banho. Subi e quando vi a cachoeira me desequilibrei e cai. Na queda, bati a cabeça e desmaiei. Como estava sozinho, não sei quanto tempo passei desacordado. Me pareceu uma noite, mas eu nunca saberei ao certo. O que sei é que depois daquela queda, meu mundo não seria o mesmo.

Lembrei quem eu era antes. Lembrei do meu primeiro encontro com minha mulher. Lembrei do nosso casamento, lembrei e senti como era e sou apaixonado por ela. Lembrei dos meus pais, do meu irmão. Lembrei daqueles meus amigos que me resgataram no centro da cidade. Lembrei de tudo e, magicamente, não esqueci o que tinha feito enquanto estava adormecido na minha amnésia.

Andei o mais rápido que pude e voltei pro meu antigo mundo, esperando um perdão provável, mas difícil. No caminho, longo, imaginei dormir ao lado da minha mulher novamente, desejei seu corpo, ansiei pela companhia dos meus pais, do meu irmão. Corri o mais que pude e, uma semana depois de ter deixado a cachoeira, cheguei ao Rio de Janeiro.

Fui ao meu antigo prédio e perguntei por minha mulher. O porteiro não a conhecia e não sabia nada sobre ela. Sentei e esperei a síndica que me informou que o apartamento havia sido vendido três anos antes. Meu deus, quatro anos se passaram, desde que meu passado desapareceu. Correndo, sempre correndo, fui à casa de meus pais e me avisou o dono da mercearia que eles haviam morrido dois anos antes.

Um desespero imenso tomou meu corpo e meu coração. Sentei no meio fio e chorei por muito tempo.
  Um mendigo passou e me ofereceu cigarros. Fumei meia dúzia. Um sentimento de derrota se alastrava e chegava ao meu estômago. A culpa pesava em meus ombros e com a cabeça entre os joelhos tentei pensar no que fazer.


Andando, cheguei ao trabalho do meu irmão. Ele, como imaginei, não trocou de emprego nestes quatro anos. Dei meu nome na portaria e esperei que o avisassem. Sentei e, depois de longos minutos, vi um homem velho, andando com dificuldade, saindo do elevador. Com o rosto torto, conseqüência de um derrame, meu irmão me abraçou e chorou como da primeira vez em que nos reencontramos.

Sentados em um bar, me contou que meus pais morreram de repente. Me ocultou o motivo, mas deixou transparecer que a tristeza os havia levado. Deu-me detalhes do momento em que o derrame destruiu parte do seu corpo e de como havia sido difícil segurar aquela barra sozinho. E disse, antes que eu perguntasse, que nada sabia sobre minha mulher.

Quando acabou o café, pedi que me desse alguns telefones e com eles consegui chegar ao endereço atual da minha mulher. Me despedi de meu irmão prometendo reencontrá-lo no dia seguinte para contar a minha história. O abracei com carinho e fui em direção ao meu passado.

Cheguei ao prédio indicado como sendo o de minha mulher. Encostei num poste e esperei alguns minutos, tentando controlar minha respiração. Precisei de quase meia hora. Ao final, respirei fundo e fui, deixando que minhas pernas andassem no automático. Não pedi que me anunciassem. Entrei no elevador e apertei o botão. Minhas mãos, apenas suor.

Parado na frente da porta, precisei de mais algum tempo. Toquei a campanhia. E muito tempo se passou. Quando a porta se abriu, lá estava ela, linda como sempre. Me olhou em choque. Ensaiou chorar. Mas antes que as lágrimas vencessem seus olhos, duas pequenas crianças a cercaram. Ela retomou o controle e pediu para que eu nunca mais voltasse. Não deu oportunidade para que minha boca se abrisse. Fechou a porta.

Desde então, aprendi que minha esposa havia se casado com um velho amigo meu e com ele teve dois filhos. Meus pais, já não existem mais. Meu irmão luta a cada segundo para esquecer seu futuro e eu, bom eu me mudei definitivamente para as ruas do centro do Rio. Ali, vivo com meus amigos mendigos. Ali tento esquecer, ali tento não ser.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Breve desabafo

Como ele nunca houve, nem perto. Admito que a culpa da separação foi minha. Eu era muito jovem, embrião de feminista e não entendia que algumas coisas não mudam. Acreditava numa relação de iguais, quando nunca somos iguais. Acreditava em centenas de coisas que hoje não lembro. Definitivamente, não eram importantes. Vivi como desejei, mas perdi meu maior desejo que era tê-lo ao meu lado.

A última vez que o vi foi no verão de 1932. Estávamos num parque. Não lembro o nome do lugar, mas me recordo bem da habilidade que ele tinha de me segurar pela cintura. Ao mesmo tempo em que usava a força de um animal, encaixava as mãos como um cavalheiro. Pressão e delicadeza, paixão e amor, juntos inseparáveis.

Ele, deitado na grama, me contava coisas que eu não sabia. Eu, de olhos fechados, recitava poemas impossíveis e assim víamos o tempo correr. Enquanto o sol descia de encontro a terra, eu imaginava uma vida inteira. Naquela tarde maravilhosa, ele me contou que era casado e que tinha uma filha pequena.

Fiquei louca. Tive vontade de arrancar os cabelos, de chorar, de fugir. Mas não fiz nada. Sentei-me e fitei o sol que já tinha ido embora. Não seria um simples homem que me faria perder o controle. Hoje teria feito tudo que não fiz. De nada me serviu o maldito controle. A idade me fez ver as coisas de outro ângulo, digamos assim.

Levantei e não olhei pra trás. Nunca mais o vi. Nunca mais o tive. E hoje com 78 anos de idade, me lembro de uma época de ouro e imagino. Fotos, não tenho. O que fica? Duas frases: não existem regras para nada, e orgulho, só serve da boca pra fora. Que eu aprenda para a próxima.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Diário de um desmemoriado (parte 2)

(continuação) Ainda tenso e angustiado pelo encontro com meu irmão, aceitei conhecer minha esposa. Toda a caravana de novos-velhos amigos se encaminhou para o metrô da Carioca. No caminho, mendigos - grandes companheiros - me saudaram e desejaram sorte. Toda aquela gente que me acompanhava falava ao mesmo tempo, me tocava, ria e tentava me fazer rir. E eu - incoscientemente - não ouvia nada. Palavras e mais palavras sem nenhum conteúdo emocional forte o bastante para me tirar da minha amnésia. Imagine você, ir a um encontro com pessoas que não conhece, o seu principal desejo será - provavelmente - ir embora. Eu só queria ir embora. Enquanto isso, a questão passou a ser quem pagaria minha passagem.

Infinitos 30 minutos se passaram até que desembarcássemos na Praça Saenz Peña. Segundo o que meu irmão me dizia e repetia sem parar, iria ser uma tarde fantástica, já que meus pais também estavam esperando para me encontrar. No caminho para o prédio - na General Roca - tentei encontrar o silêncio mas fui impedido pela fúria verborrágica dos "amigos" que me acompanhavam. Na dúvida e completamente constrangido pela minha falta de memória, escolhi o chão e com ele fui até chegar ao prédio onde conheceria o restante da minha família. Na portaria, discutiu-se por muito tempo como subiríamos já que só havia um elevador funcionando. Naquele momento, eu era a atração principal de um circo que eu não conhecia.

Fui o último a entrar no elevador. Antes da minha vez, seis viagens lotadas foram feitas ao quarto andar. Quando saí do elevador, eu era uma noiva. Dezenas de pessoas fizeram um corredor polonês de olhares para me ver passar e encontrar minha família. Respirei fundo, completamente alheio a toda aquela emoção. No final do túnel de rostos desconhecidos, um casal de senhores e uma mulher me esperavam. A tal mulher não se conteve e se jogou no meu pescoço, os senhores se limitaram a chorar em silêncio. Silêncio. Era tudo o que eu precisava e tudo o que eu não tinha.

A mulher agarrada ao meu pescoço era bonita e me olhava com amor. O casal de senhores tinham traços familiares, talvez por serem meus pais. Fiquei extremamente deslocado, suspenso no murmurinho que invadia a casa. Fui salvo por meu irmão que expulsou sob protestos as dezenas de desconhecidos que ainda formavam o corredor polonês. Eles queriam mais, eles queriam histórias, eles queriam alguma coisa que eu - definitivamente- não poderia lhes dar. No aconchego de um família que pele menos legalmente era minha, me limitei a escutar. Sabia que qualquer palavra mal colocada poderia causar danos graves àquelas pessoas que - em princípio - apenas me amavam.

Já sentado, sorvendo um café que me pareceu espetacular, fui intimado a contar o que tinha me acontecido. Contei das minhas caminhadas, contei dos meus amigos mendigos, dos velhinhos que não queriam dividir a comida, do relógio que não funcionava e me calei, pois não tinha mais nada pra contar. Aí começou a parte chata, a de escutar sobre a vida de um eu que não era eu. Mais vídeos, mais fotos, mais choro. Pedra. Era o que eu era. E isso me doia demais. Saber que a falta de emoção bombardeava o coração daquelas quatro pessoas que me cercavam. A conversa durou a tarde inteira e durante todo esse tempo, interjeições se tornaram minha especialidade. Como no momento em que recebi meu primeiro abraço, eu só queria ir embora.

Mas não aconteceu. Depois de me despedir de meus pais e irmão, fui com minha mulher para a nossa casa. Entrei no carro e escolhi a luz do painel como companheiro e com ela dividi o silêncio até o final da viagem. Dentro da casa, fiquei curioso. Eu ajudei a decorar isto? Era terrível, de extremo mau gosto. A mulher que me cercava começava a me dar naúseas. Tudo me dava vontade de fugir. Por dentro me sentia uma panela de pressão a ponto de estourar. Sentei. Respirei. Pedi uma toalha e entrei no banho. Quando saí, encontrei a mulher nua me esperando na cama.

Ela era bonita, formosa. Mas deus, eu não queria nada. Eu não a conhecia! Pedi a ela que por favor me deixasse descansar. A menina entendeu o recado e se vestiu. Doeu mais uma vez. Eu sabia que a estava magoando. Deitei e fui informado de que estava no lado errado da cama. Sutil vingança. Rolei. Tentei dormir, mas meu cérebro preferiu pensar em uma maneira de sair dali e o mais rápido possível. Assim que minha mulher adormeceu, levantei, me vesti e saí de casa. No corredor, vi fotos nossas. Pareceu que eu era realmente feliz. Mas aquela decoração, eu não faria absolutamente.

Finalmente consegui ir embora.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

História de Trocador

Uma história que me contaram por aí:

Flávio era um cara tímido. Muito tímido. Já tinha completado 19 anos e nunca tinha beijado na boca. Ao ver meninas, tremia dos pés a cabeça e, o mais importante, nunca tinha tido a oportunidade de se apaixonar. Num dia qualquer, resolveu entrar numa loja de CD. Entrou sem procurar nada e achou o que não esperava. Laura, a vendedora. Delicada, pequena, cabelos negros, três ou quatro piercings espalhados pela cara. Quando a viu, Flavio não conseguiu se mover, estagnado dentro do próprio coração. A menina que reconheceu nele algo que não identificava, se aproximou e perguntou se podia ajudar. O menino agarrou um CD qualquer e entregou à vendedora. Eram 15h.

A partir daquele momento, Flavio passou a visitar a loja diariamente e sempre às 15h. Comprou inúmeros CD's que nunca abriu e que ocupavam os armários e o chão de seu quarto. Foram três meses de visitas rápidas, intensas e mudas. Flávio esticava o braço com um CD pendurado em suas mãos e Laura fazia o seu trabalho. O máximo que Laura ouviu foram bons-dias balbuciados. Certo dia, Flavio não apareceu e a este dia se seguiram outros. No quarto dia em que a ausência se fe presente, Laura decidiu ir atrás de notícias.

Vasculhou os recibos de venda e descobriu o nome completo do rapaz. Na Internet, conseguiu o telefone e ligou. Boa tarde, por favor o Flávio? Quem gostaria? Laura, sou a vendedora da loja de CD's. Onde fica essa loja? Na rua do Almeida 23. Pois bem, em uma hora estou aí. Mas quem está falando? Marcia, mãe do Flávio. E o telefone foi desligado.

As 16h, Marcia apareceu com uma mala. Laura que já esperava a visita se adiantou e a convidou para sentar num canto mais reservado da loja de CD's. Quando Marcia começou a chorar, Laura sentiu que as coisas não iam bem. Entre soluços a desesperada mãe contou a Laura que o filho havia morrido atropelado quando voltava pra casa da loja de CD's.

Com os olhos embassados, empurrou a mala na direção de Laura que, chorando, reconheceu dentro dela os compactos que havia vendido. Todos completamente lacrados. Laura começou a chorar copiosamente e, um a um, foi rasgando os lacres e colocando sobre a mesa os bilhetes que ali escondia na esperança de que um dia Flavio correspondesse seu amor.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Diário de um desmemoriado (parte 1)

Perdi a memória. Tudo o que me lembro se resume em saber que sou e que me chamo Erico. O anel no meu anular esquerdo acusa um casamento e, portanto, uma mulher. Espero. Os dentes amarelados me avisam que sou fumante. O resto é história de transeunte. Me disseram que cai no meio da rua, bati a cabeça no meio fio e desmaiei. Acordei com uma dezena de pessoas tentando me fazer voltar à tona. Voltei, mas não reconheço a superfície.

Na confusão, me levaram o celular e a carteira, portanto não tenho idéia do que fazer ou para quem ligar. Levantei e fiquei andando, perdido, pela Cinelândia. Torcendo para que alguém me reconhecesse. Talvez estivesse estampado na minha cara o medo e a angústia já que fui abordado por um crente e parado por dois bandidos que não tinham nada para levar.

No final do primeiro dia, fiz fila na sopa servida sob os Arcos da Lapa. Ali conheci uma dezena de mendigos e alguns velhinhos. Os velhinhos reclamaram e tentaram me expulsar com medo que não tivesse comida para todos. Os mendigos me ofereceram cigarros e conversa. Aceitei um Hollywood amassado. Tentei tragar e quase morri. Se era, não sou mais fumante.

Assim passei três dias. Andando. Esperançoso de que alguém corresse na minha direção e me abraçasse sorridente. Percorri toda a Rio Branco uma centena de vezes. Devagar. Conheci muita gente. Enquanto ainda estava limpo, era ignorado por todos. Quando a poeira tomou conta da minha pele, entrei pro grupo dos mendigos. Com eles, encontrar comida não seria problema.

Tudo correu bem, dentro do possível, até o dia em fui abraçado. Quando já me acostumava àquela vida de rua, fui abraçado sem dó nem piedade por uma, creio, amiga. Enquanto ela falava, me beijava e me abraçava, percebi que o relógio do Largo da Carioca não funcionava. Ela – que se disse Marina – só foi perceber que eu não tinha a menor idéia de quem era ela, quando percebeu meus olhos fixos no tal relógio quebrado.

Me fez sentar. Entramos no Bar Luiz, no qual quase fui barrado, imagino por minhas roupas. Pedi uma salada de batata, informando que não podia pagar por elas. Neguei a cerveja. Enquanto comia com prazer, acompanhava de soslaio os movimentos nervosos de Marina com o telefone. Em cinco minutos, ilustres desconhecidos se juntavam a nós e me faziam muitas perguntas, alguns deles choravam. Tive vontade de sair correndo. Cheguei a levantar, mas tive que parar para ser apresentado ao meu irmão.

Admito que chorei. Não por um sentimento de reencontro tardio, mas por angústia. Simples e complexa angústia de quem não sente nada, mas que deveria. O cara – grande e barbudo – chorava como uma criança. Quando vi o garçom limpando as lágrimas, explodi. E foi um tal de chorar que quase me fez tentar fugir de novo. Vi fotos de carteira, escutei histórias minhas, mas nada me lembrou nada.

Para aquela mesma tarde, como me foi informado, iria ser apresentado a minha mulher. O pior: não tinha a menor idéia de quem era ela.

domingo, 2 de maio de 2010

Fragmento

- Esquece!

Disse Armando.

- Esquece e vai embora.

E a noite engoliu Nora. E a noite engoliu Nora.

Nora não disse nada que se tenha ouvido. Esses casos são mais sutis, não se fala tanto: se adivinha mais - ou se assume capaz.

No caminho até o desfecho, o que se costumava falar foi sendo obliquamente substituido pelo que se adivinhava. As palavras de pedra ou pena, recém saídas da boca, caíam logo ao chão ou voavam pela janela. No tímpano virgem do ouvinte, retombava solenemente sua própria palavra.

Logo não passava palavra alguma e assim permaneceram por longos 6 anos, 3 meses e 1 dia: 113 discussões, 8 grandes viagens, 3,5 traições e 632 trepadas no mais magnífico silêncio.

Nora foi embora. Armando dormiu chorando. Ambos com imensa saudade de tudo que foi escutado, mas nunca dito.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Diário de um senhor (página 40)

Enfim compreendi a teoria de Einstein. Demorei 96 anos para saber que o tempo pode passar mais devagar. Na verdade, passei a entender mais coisas do que gostaria. Uma delas é que as pessoas devem acreditar que velhice é contagiosa. Bom, na verdade, é e bastante. Até hoje nunca vi alguém que não envelhecesse.

Escrevo essas palavras, pois fiz uma descoberta incômoda e queria compartilhar. A última vez que recebi um carinho gratuito ou um cafuné demorado foi há dez anos, quando minha mulher de toda a vida morreu. Desde então transformei-me para os outros em um tipo de estátua. Na verdade, o era há muito tempo, mas só percebi quando passei a dormir sozinho.

Entendam que não é uma reclamação e sim uma constatação. Eu mesmo nunca devo ter feito carinho em meus avós ou pais depois que virei adulto. O máximo que lembro são abraços rápidos e talvez, com um pouco de sorte, um beijo nas bochechas ou nas mãos.

E assim como meus pais e avós perderam o tato com o mundo, eu também acabei transformado em ferro ou latão junto com milhares de senhores e senhoras que tomam os banquinhos das praças nos finais de tarde.

Interessante é que o carinho claramente existe. Os olhares passam amor e admiração, mas algo – que não entendo – impede o contato físico. Sinto muita falta do contato físico. Poderia apostar que meus cabelos brancos nunca foram afagados. Triste, para mim, evidentemente.

A conclusão a que chego só pode ser uma. Como eu na juventude tinha medo de envelhecer e me afastava fisicamente dos mais velhos, os mais novos de hoje sentem o mesmo e evitam a mim. Queria dizer que não adianta. Nada adianta. A velhice chega, mas ela pode vir com ou sem cafuné.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Curiosidade Mórbida

Procurando espaço para respirar entre as paredes cheias de musgo, tento encontrar o fim deste corredor. Por pura curiosidade suicida entrei na fresta que se escondia atrás de arbustos no meio da floresta. Uma placa dizia, Antes de entrar, deixe aqui sua sombra. E assim o fiz sem saber muito quanto vale uma sombra.

Começo a caminhada, a aventura se faz a melhor do mundo. Meu cérebro não funciona e a adrenalina comanda meu corpo. Alguns metros adiante, percebo que sangue escorre da minha cabeça, mas não sinto nenhuma dor ou incômodo. Me mordo, me aperto e, enfim, descubro para que servem as sombras.

Quando meu relógio, que nunca uso, bate 12h, descubro que há vinte minutos me enfiei neste buraco. Ao perceber as horas, vejo também que meus braços estão cobertos de insetos, que minha cara é lama pura e imagino que não me reconheceria no espelho com os tantos cortes sentidos na pele.

O nervosismo substitui a adrenalina com a velocidade da luz. Os insetos que antes não via, agora sinto. Se movendo em todas as direções num baile de antenas. A lama que não existia chega aos meus joelhos e cobre minhas mãos. Os cortes ardem e eu percebo que há luz no fim o túnel.

A luz é tênue, mas consegue iluminar o caminho. Na verdade sinto a luz, mas não posso identificar de onde vem. Meus olhos lacrimejam sem parar e a visão está completamente embaçada. Sinto minha garganta, seca. Minha boca cheia de terra e larvas. Meu nariz que não cheira mais nada.

Teias de aranha me aquecem quando não há frio ou calor. Só há anestesia. Ratos se aninham em minhas pernas, como gatos dizendo bom dia. Insetos fazem o que se espera deles, mordem. Mordem muito. Aranhas brincam com meus lábios e eu não sinto, simplesmente. A luz desaparece.

Por duas vezes tropeço. No mesmo lugar. Me afundo na tal lama que chegava aos meus joelhos. A terra molhada misturada a objetos irreconhecíveis acalmam a dor que não sinto, mas vejo. O couro cabeludo também sangra e percebo que meus tufos de cabelo se juntam a outro tufos mais antigos presos no teto baixo cheio de espinhos.

O nervosismo, segundo a chegar, dá lugar ao comodismo, triste e último. A cabeça não existe e o corpo se move por vontade própria obedecendo a um instinto antigo de sobrevivência. Nada mais resta, só a respiração dificultada pelos insetos insistentes e o sangue que escorre, incomodando meus olhos e fazendo-me piscar.

Acordo. Parece que desmaiei. Tenho três ratos no colo que tentam alcançar uma cobra enrolada no meu pescoço. Meus olhos quase não se abrem e ainda assim, sei que são ratos e sei que é uma cobra. Meu rosto está devastado, minha língua imobilizada. Fecho os olhos e tento ver o mar, mas sinto a luz e, pela última vez, encaro minha sombra.

Na escuridão que domina a mais linda das florestas
Está a resposta
No coração que mente, rouba, mata e deseja o mal
Está a resposta

No grito que destrói o canto de todas as aves
Está a resposta
No fedor, no feio, no ultrajante vômito do mundo
Está a resposta

Porque a resposta está onde menos esperamos
A resposta nos aguarda onde nunca exploramos
Quando viramos a cara, nos escondemos das respostas
Quando corremos do medo, perdemos a aposta.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Enxurrada de Silêncio

Há sete dias ele parou de falar. Seus olhos não mostravam agonia nem medo. Amigos e familiares reunidos na sala ou no bar da esquina comentavam o acontecido. Ninguém entendia. Não houve nenhum acidente. Brigou com a ex-namorada, mas era comum, natural. Seus pais começaram a pensar que fosse um capricho vaidoso. Sua avó rezava e pedia a são benedito que o fizesse voltar a falar. Nada adiantava. Sua boca não se abria, nem para gemidos. Seu irmão num ato desesperado espetou-o com um alfinete. Cara de dor, mãos contraídas, mas nenhum som. Outra: não revidou. Olhou para o irmão com expressão rasgada de pena, teatral. Tinha-se levantado com o susto, mas sentou-se calmo, coçando levemente a coxa furada. Para os que assistiam não existia outra saída que não esperar.

Foram sete dias de tentativas desesperadas, uma eternidade de silêncio inconsolável e de muito barulho. Mais de cinqüenta pessoas passaram pela porta daquele quarto. Toda a pequena cidade se mobilizou. Incontáveis beijos e abraços, verdadeiros ou não, tocaram um corpo estático, onde só a expressão se alterava.

Lá pelas duas da manhã do sétimo dia, os irmãos que voltavam da bebedeira encontraram o dono do silêncio sentado no sofá. Assustados já que ele raras vezes tinha ficado de pé nesta última semana – começaram a gritar, soando o alarme. Em exatamente dois minutos aquele que não abria a boca estava cercado de mãos, beijos e olhares de interrogação.

Quando o silêncio mais uma vez tomou conta daquela família e fez por um milésimo de segundo que todos os presentes ficassem calados, a boca que havia se mantido em silêncio se abriu. Emitiu um silvo forte e agudo que levou as mãos de todos às orelhas. Um silêncio, mais profundo, jamais sentido nem pela avó que tinha mais de oitenta, seguiu o ensurdecedor barulho. Era uma pausa necessária, mostrando que algo iria vir e não seria uma coisa qualquer.

Iniciou-se então uma narrativa, com ritmo rápido quase incompreensível. Com silabas atropeladas, toda a história do mundo foi contada desde sua criação até o seu fim, não tão próximo, mas já com data marcada. O mundo foi desconstruído e reconstruído, todos os conceitos foram explicados e as grandes perguntas foram respondidas.

Depois de uma enxurrada de palavras e revelações, o silêncio voltou como uma corrente, invadindo com violência o corpo daquele que ousou falar tudo aquilo. Rompeu seu coração, rasgou seu pulmão, fazendo o sangue encher sua boca. Seu corpo caiu inerte, desta vez sem nenhuma expressão, e ficou no chão sozinho na solidão dos recém mortos.

Sua família não ousou nenhum movimento por muito tempo, talvez três dias. Ficaram estáticos sem se olharem, talvez por vergonha de suas vidas sem propósito, talvez esperando que alguém se abaixasse para confirmar a morte do garoto, que com tanto sangue e nenhum movimento não precisava ser confirmada. As campainhas e os telefones insistentes não interferiram naquele interminável momento de reflexão.

Por muito tempo, nada se soube daquela estranha família que um dia experimentou o silêncio. O que restava eram lendas que percorriam a cidade. O jardineiro da paróquia disse que o pai foi morar numa ilha deserta com a mãe reatando um relacionamento que já estava enterrado. O dono do açougue afirma que o irmão mais velho morreu na Antártica defendendo as focas dos caçadores. Os meninos do porto dizem ter ouvidos histórias de uma avó que vive de contar histórias, e a TV, outro dia, mostrou que o irmão mais novo estava correndo o mundo literalmente. As câmeras pegaram o menino correndo na Nigéria, décimo quinto país que visitava. Atrás dele, uma multidão sorridente e sem roupas seguia seus passos.

domingo, 25 de abril de 2010

Amor atrasado

Era a segunda ou terceira vez que te via. Não tinha conseguido me aproximar ainda. O máximo que tinha conseguido eram respostas monossilábicas que nada adiantavam e que nada diminuiam minha agonia. Você também não ajudava nos meus planos. Sempre concentrada nos seus afazeres, pouco me dava atenção. Quando me olhava, usava um certo olhar de desdém que evidentemente me faziam menor diante de tudo. Tentei cartas, tentei e-mail, você nunca me respondia. Falei com suas amigas. Cheguei a falar com seus pais, ou melhor, só o seu pai que, apesar de muito cordial, me pareceu bastante assustador. Nada adiantava, nada melhorava minha condição diante de seus olhos. Neste meio tempo arrumei um emprego melhor e pude me vestir melhor, fazer exercícios físicos, enfim cuidar-me melhor. Passaram-se três meses. Estava dez quilos mais forte, entenda bem: forte, não gordo. Só tinha roupas de qualidade que me davam um ar sofisticado. Usava lentes no lugar daqueles óculos pesados. Passava gel no cabelo e tinha pagado a segunda parcela do meu carrinho zero. Nem assim você me dava atenção. Até que um dia apareci morto dentro do banheiro da faculdade. Uma faca de cozinha daquelas bem vagabundas estava enterrada no terceiro buraco aberto no meu peito. Pelo jeito não gritei, talvez surpreso, provavelmente feliz. As facadas vinham acompanhadas de sussurros: te amo, te amo, te amo.

Corrida

Ele corria mais do que ninguém. Corria para acordar. Escovava os dentes ao mesmo tempo em que colocava as meias. Corria para ir ao trabalho. Perdeu as contas de quantas pessoas atropelou em seu caminho, de quantos bons dias deixou no ar e de quantos sorrisos deixou de perceber. Corria para fazer suas tarefas. Na verdade nem conseguia lembrar o que tinha feito no dia anterior. Corria para comer. Engasgou incontaveis vezes e foi salvo outras tantas por garçons e fregueses atentos que impediram uma morte prematura consequência de um caroço de azeitona. Corria para conhecer gente. Sua primeira namorada se apresentou quanto terminaram sua primeira noite de sexo, que durou, segundo o relógio dela, dois minutos. E corria também para se despedir. No caso da primeira namorada, esqueceu de dizer o próprio nome e não tinha a menor idéia do nome dela. Corria de si mesmo e não lembrava de como era seu rosto. Espelhos não tinha em casa. Correu tanto que chegou na frente, completamente sozinho. Quando parou, o fez aos 75 anos e não por vontade própria, mas obrigado por uma artrite que o impedia de levantar da cadeira. No primeiro dia que sentou em sua poltrona com um atestado médico nas mãos descobriu que não tinha agenda telefonica, percebeu que não conhecia ninguém, constatou que não havia mais um porquê. Tentou levantar e caiu de joelhos diante do aparelho de TV preto e branco. Morreu vagarosamente com pontadas cadenciadas que atingiam seu coração de hora em hora. Morreu lentamente achando que a morte também iria ser rápida.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Indias do Além Mar

No dia 26 de abril de 2015 eu morri. Mas foi uma morte espetacular. Me lembro bem do momento, dos movimentos, das faces, das contrações. Encontrei o meu fim, dando de cara com meu começo; já explico.

Era uma quarta-feira e como faço todas as quartas, terminei meu expediente e fui tomar minha cerveja no bar do Chico que fica na esquina lá de casa. O botequim era como meu segundo lar. Ali, entrava tirando a gravata, desabotoando a camisa, xingando um e outro carinhosamente como quem diz boa tarde.

Como sempre, sentei-me bem em frente aos risoles de camarão e que fique claro: os de camarão. (Em frente aos risoles de palmito - identificados por uma bolinha de massa por cima - sentava-se o Freitas, que só bebia água). Bom, em frente aos risoles de camarão, pedi uma cerveja, pão velho, azeite e sal e com esses ingredientes as horas passavam rápido; comendo, bebendo e dando pitaco nas conversas dos outros.

Tudo ia bem naquela dia, o calor dava lugar a uma brisa leve, o Fluminense ganhava de 2 a 0 do Cabofriense e minha mulher não tinha me ligado ainda. Entre pensamentos soltos despertei do maravilhoso mundo dos altos com uma vontade espetacular de ir ao banheiro. Levantei do banquinho, tropecei no cachorro da dona Clotilde, cumprimentei um simpático bêbado, fiz careta para o seu Joaquim e seu charuto e entrei no cubículo, descarreguei meus excessos e voltei por onde tinha ido. Enquanto fechava a porta do banheiro a vi.

Minha mulher. Ela estava linda, como quando a conheci dez anos atrás. Estava com o rosto limpo, sem maquiagem, o que realçava seus traços indígenas; seus cabelos negros estavam soltos, selvagens. Usava um vestido amarelo dois dedos abaixo da dobra da bunda e uma sandália de palha, o que tornava o quadro uma pintura naturalista sem igual.O tempo parou e naqueles minutos, ou melhor, segundos, a vi me abraçando quando nos conhecemos, lembrei dos beijos enlouquecidos, dos apertos endiabrados, do tesão incontrolável de um passado enterrado.

E me lembrei disso tudo pq nela vi não só a beleza natural que sempre foi uma marca registrada. Além de todos os traços perfeitos, o corpo escultural, a luz sobrenaturtal, havia nela raiva; um desespero que vinha do fundo do estômago e que transfigurava toda aquela beleza em força pura, em energia cósmica, em pressão, em vibrações que por pouco não derrubaram os copos e garrafas que se equilibravam nas estantes do Chico.

Talvez não tenha desejado entender o que estava passando. A imagem daquela mulher perfeita, a energia genuinamente original, o peso daqueles olhos me puseram em um estado de recepção, de frigidez completa. Nenhum músculo meu se mexeu, fiquei parado, com as mãos baixas, respiração rápida e olhos fixos em uma lembrança que voltava, em uma memória que se tornava um momento presente de novo. Era como se estivesse em alfa, mas consciente e bastante acordado.

Enquanto percebia minha condição de estátua, ela avançou. E enquanto avançava, percebi que os risoles de camarão e de palmito tinham trocado de lugar, que minha cerveja era água e que o Freitas era uma mulher que só bebia cana, que o cachorro da dona Clotilde era um senhor de nome Evandro, que o simpático bêbado era meu filho, que seu Joaquim na verdade era um fiscal do ministério da saúde que analisava os charutos vendidos na casa. Quando me dei conta de tudo isso, o que para mim foi um terrível esforço, senti a pontada.

A faca entrou e estraçalhou meu velho estômago e subiu e rasgou e cortou a bisnaga com azeite e sal que não tinha mastigado direito. Senti a outra mão em minhas costas, apertando meu corpo contra a lâmina, senti o respirar nervoso no meu pescoço, senti o cheiro daqueles cabelos negros pelo quais me apaixonei dez anos atrás. Senti um monte de coisas que não podem ser descritas por palavras. Senti pânico, senti leveza, senti horror, senti uma tranquilidade imensa e senti saudades. Saudades do que havia esquecido. Como pude esquecer isso? Como?

Entre respirações aceleradas, batimentos cardíacos a ponto de desandar, suores, gritos, cabelos, peles, cheiros, encontrei os olhos dela e com os olhos vi que ela me perdoava. Entendi que naquele ato trágico não havia vingança, não havia ódio e sim amor, o mais puro amor que pode existir, o amor que mata. Me fixei em seus olhos esperando o momento em que meu coração entraria em colapso, me fixei em seu corpo, em seu rosto e vi a morte, sensual como uma dançarina árabe, me recolhendo, me apertando, me usando, me cuspindo, me acariciando.

E ali, naquele microssegundo, cometi meu último ato de traição. A morte beijei, agarrei, rasguei, invadi e com ela vi estrelas. Gozei centenas de vezes e suei litros de amor e gritei palavras sujas em línguas que nunca conheci. Ali ganhei minha liberdade, ali decidi de uma vez por todas abandonar a índia por quem havia me apaixonado. Ali fizemos uma troca, ela me apresentou a minha amante definitiva e eu a presenteei com o meu desaparecimento.

Feliz e cansado, acendi um cigarro e passei a mão na cabeça da índia que ria sobre meu corpo.