segunda-feira, 24 de maio de 2010

Diário de um desmemoriado (parte final)

Minha idéia era construir uma nova história e me afastar de uma que não era a minha. Depois que deixei o prédio onde morava quando tinha memória, andei muito. Da Tijuca fui ao Centro, do Centro ao Porto, do Porto à Niterói. Caminhando, devagar. Sem hora, sem relógio. Observado paisagens que, mesmo velhas, eram inteiramente novas. Descobrindo gostos, cheiros e redefinindo o que gostava e o que não.

Andando, visitei lugares desertos onde o silêncio me fazia falar sem parar com o objetivo de ocupar todo o ar a minha volta. 
 Me perdi em grandes metrópoles onde o ar estava permanentemente ocupado por vozes e sons que me mantinham calado. Fui e voltei. Conheci e me despedi. Me embriaguei e vomitei. Gargalhei e chorei. Fiz tudo o que me deu vontade e fui feliz.

Fui tão feliz que por semanas esquecia que um dia tinha sido outra pessoa. Com uma vontade inquebrável fiz todo o possível para manter aquela ante-vida bem distante. Desde o dia em que conheci meus pais e minha mulher, não voltei a vê-los ou a falar com eles. Me fazia bem saber que não havia volta. Pelo menos, assim eu imaginava.

Um dia, resolvi subir uma trilha atrás do barulho de água que prometia um bom banho. Subi e quando vi a cachoeira me desequilibrei e cai. Na queda, bati a cabeça e desmaiei. Como estava sozinho, não sei quanto tempo passei desacordado. Me pareceu uma noite, mas eu nunca saberei ao certo. O que sei é que depois daquela queda, meu mundo não seria o mesmo.

Lembrei quem eu era antes. Lembrei do meu primeiro encontro com minha mulher. Lembrei do nosso casamento, lembrei e senti como era e sou apaixonado por ela. Lembrei dos meus pais, do meu irmão. Lembrei daqueles meus amigos que me resgataram no centro da cidade. Lembrei de tudo e, magicamente, não esqueci o que tinha feito enquanto estava adormecido na minha amnésia.

Andei o mais rápido que pude e voltei pro meu antigo mundo, esperando um perdão provável, mas difícil. No caminho, longo, imaginei dormir ao lado da minha mulher novamente, desejei seu corpo, ansiei pela companhia dos meus pais, do meu irmão. Corri o mais que pude e, uma semana depois de ter deixado a cachoeira, cheguei ao Rio de Janeiro.

Fui ao meu antigo prédio e perguntei por minha mulher. O porteiro não a conhecia e não sabia nada sobre ela. Sentei e esperei a síndica que me informou que o apartamento havia sido vendido três anos antes. Meu deus, quatro anos se passaram, desde que meu passado desapareceu. Correndo, sempre correndo, fui à casa de meus pais e me avisou o dono da mercearia que eles haviam morrido dois anos antes.

Um desespero imenso tomou meu corpo e meu coração. Sentei no meio fio e chorei por muito tempo.
  Um mendigo passou e me ofereceu cigarros. Fumei meia dúzia. Um sentimento de derrota se alastrava e chegava ao meu estômago. A culpa pesava em meus ombros e com a cabeça entre os joelhos tentei pensar no que fazer.


Andando, cheguei ao trabalho do meu irmão. Ele, como imaginei, não trocou de emprego nestes quatro anos. Dei meu nome na portaria e esperei que o avisassem. Sentei e, depois de longos minutos, vi um homem velho, andando com dificuldade, saindo do elevador. Com o rosto torto, conseqüência de um derrame, meu irmão me abraçou e chorou como da primeira vez em que nos reencontramos.

Sentados em um bar, me contou que meus pais morreram de repente. Me ocultou o motivo, mas deixou transparecer que a tristeza os havia levado. Deu-me detalhes do momento em que o derrame destruiu parte do seu corpo e de como havia sido difícil segurar aquela barra sozinho. E disse, antes que eu perguntasse, que nada sabia sobre minha mulher.

Quando acabou o café, pedi que me desse alguns telefones e com eles consegui chegar ao endereço atual da minha mulher. Me despedi de meu irmão prometendo reencontrá-lo no dia seguinte para contar a minha história. O abracei com carinho e fui em direção ao meu passado.

Cheguei ao prédio indicado como sendo o de minha mulher. Encostei num poste e esperei alguns minutos, tentando controlar minha respiração. Precisei de quase meia hora. Ao final, respirei fundo e fui, deixando que minhas pernas andassem no automático. Não pedi que me anunciassem. Entrei no elevador e apertei o botão. Minhas mãos, apenas suor.

Parado na frente da porta, precisei de mais algum tempo. Toquei a campanhia. E muito tempo se passou. Quando a porta se abriu, lá estava ela, linda como sempre. Me olhou em choque. Ensaiou chorar. Mas antes que as lágrimas vencessem seus olhos, duas pequenas crianças a cercaram. Ela retomou o controle e pediu para que eu nunca mais voltasse. Não deu oportunidade para que minha boca se abrisse. Fechou a porta.

Desde então, aprendi que minha esposa havia se casado com um velho amigo meu e com ele teve dois filhos. Meus pais, já não existem mais. Meu irmão luta a cada segundo para esquecer seu futuro e eu, bom eu me mudei definitivamente para as ruas do centro do Rio. Ali, vivo com meus amigos mendigos. Ali tento esquecer, ali tento não ser.

Nenhum comentário: