segunda-feira, 3 de maio de 2010

Diário de um desmemoriado (parte 1)

Perdi a memória. Tudo o que me lembro se resume em saber que sou e que me chamo Erico. O anel no meu anular esquerdo acusa um casamento e, portanto, uma mulher. Espero. Os dentes amarelados me avisam que sou fumante. O resto é história de transeunte. Me disseram que cai no meio da rua, bati a cabeça no meio fio e desmaiei. Acordei com uma dezena de pessoas tentando me fazer voltar à tona. Voltei, mas não reconheço a superfície.

Na confusão, me levaram o celular e a carteira, portanto não tenho idéia do que fazer ou para quem ligar. Levantei e fiquei andando, perdido, pela Cinelândia. Torcendo para que alguém me reconhecesse. Talvez estivesse estampado na minha cara o medo e a angústia já que fui abordado por um crente e parado por dois bandidos que não tinham nada para levar.

No final do primeiro dia, fiz fila na sopa servida sob os Arcos da Lapa. Ali conheci uma dezena de mendigos e alguns velhinhos. Os velhinhos reclamaram e tentaram me expulsar com medo que não tivesse comida para todos. Os mendigos me ofereceram cigarros e conversa. Aceitei um Hollywood amassado. Tentei tragar e quase morri. Se era, não sou mais fumante.

Assim passei três dias. Andando. Esperançoso de que alguém corresse na minha direção e me abraçasse sorridente. Percorri toda a Rio Branco uma centena de vezes. Devagar. Conheci muita gente. Enquanto ainda estava limpo, era ignorado por todos. Quando a poeira tomou conta da minha pele, entrei pro grupo dos mendigos. Com eles, encontrar comida não seria problema.

Tudo correu bem, dentro do possível, até o dia em fui abraçado. Quando já me acostumava àquela vida de rua, fui abraçado sem dó nem piedade por uma, creio, amiga. Enquanto ela falava, me beijava e me abraçava, percebi que o relógio do Largo da Carioca não funcionava. Ela – que se disse Marina – só foi perceber que eu não tinha a menor idéia de quem era ela, quando percebeu meus olhos fixos no tal relógio quebrado.

Me fez sentar. Entramos no Bar Luiz, no qual quase fui barrado, imagino por minhas roupas. Pedi uma salada de batata, informando que não podia pagar por elas. Neguei a cerveja. Enquanto comia com prazer, acompanhava de soslaio os movimentos nervosos de Marina com o telefone. Em cinco minutos, ilustres desconhecidos se juntavam a nós e me faziam muitas perguntas, alguns deles choravam. Tive vontade de sair correndo. Cheguei a levantar, mas tive que parar para ser apresentado ao meu irmão.

Admito que chorei. Não por um sentimento de reencontro tardio, mas por angústia. Simples e complexa angústia de quem não sente nada, mas que deveria. O cara – grande e barbudo – chorava como uma criança. Quando vi o garçom limpando as lágrimas, explodi. E foi um tal de chorar que quase me fez tentar fugir de novo. Vi fotos de carteira, escutei histórias minhas, mas nada me lembrou nada.

Para aquela mesma tarde, como me foi informado, iria ser apresentado a minha mulher. O pior: não tinha a menor idéia de quem era ela.

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