sexta-feira, 14 de maio de 2010

Diário de um desmemoriado (parte 2)

(continuação) Ainda tenso e angustiado pelo encontro com meu irmão, aceitei conhecer minha esposa. Toda a caravana de novos-velhos amigos se encaminhou para o metrô da Carioca. No caminho, mendigos - grandes companheiros - me saudaram e desejaram sorte. Toda aquela gente que me acompanhava falava ao mesmo tempo, me tocava, ria e tentava me fazer rir. E eu - incoscientemente - não ouvia nada. Palavras e mais palavras sem nenhum conteúdo emocional forte o bastante para me tirar da minha amnésia. Imagine você, ir a um encontro com pessoas que não conhece, o seu principal desejo será - provavelmente - ir embora. Eu só queria ir embora. Enquanto isso, a questão passou a ser quem pagaria minha passagem.

Infinitos 30 minutos se passaram até que desembarcássemos na Praça Saenz Peña. Segundo o que meu irmão me dizia e repetia sem parar, iria ser uma tarde fantástica, já que meus pais também estavam esperando para me encontrar. No caminho para o prédio - na General Roca - tentei encontrar o silêncio mas fui impedido pela fúria verborrágica dos "amigos" que me acompanhavam. Na dúvida e completamente constrangido pela minha falta de memória, escolhi o chão e com ele fui até chegar ao prédio onde conheceria o restante da minha família. Na portaria, discutiu-se por muito tempo como subiríamos já que só havia um elevador funcionando. Naquele momento, eu era a atração principal de um circo que eu não conhecia.

Fui o último a entrar no elevador. Antes da minha vez, seis viagens lotadas foram feitas ao quarto andar. Quando saí do elevador, eu era uma noiva. Dezenas de pessoas fizeram um corredor polonês de olhares para me ver passar e encontrar minha família. Respirei fundo, completamente alheio a toda aquela emoção. No final do túnel de rostos desconhecidos, um casal de senhores e uma mulher me esperavam. A tal mulher não se conteve e se jogou no meu pescoço, os senhores se limitaram a chorar em silêncio. Silêncio. Era tudo o que eu precisava e tudo o que eu não tinha.

A mulher agarrada ao meu pescoço era bonita e me olhava com amor. O casal de senhores tinham traços familiares, talvez por serem meus pais. Fiquei extremamente deslocado, suspenso no murmurinho que invadia a casa. Fui salvo por meu irmão que expulsou sob protestos as dezenas de desconhecidos que ainda formavam o corredor polonês. Eles queriam mais, eles queriam histórias, eles queriam alguma coisa que eu - definitivamente- não poderia lhes dar. No aconchego de um família que pele menos legalmente era minha, me limitei a escutar. Sabia que qualquer palavra mal colocada poderia causar danos graves àquelas pessoas que - em princípio - apenas me amavam.

Já sentado, sorvendo um café que me pareceu espetacular, fui intimado a contar o que tinha me acontecido. Contei das minhas caminhadas, contei dos meus amigos mendigos, dos velhinhos que não queriam dividir a comida, do relógio que não funcionava e me calei, pois não tinha mais nada pra contar. Aí começou a parte chata, a de escutar sobre a vida de um eu que não era eu. Mais vídeos, mais fotos, mais choro. Pedra. Era o que eu era. E isso me doia demais. Saber que a falta de emoção bombardeava o coração daquelas quatro pessoas que me cercavam. A conversa durou a tarde inteira e durante todo esse tempo, interjeições se tornaram minha especialidade. Como no momento em que recebi meu primeiro abraço, eu só queria ir embora.

Mas não aconteceu. Depois de me despedir de meus pais e irmão, fui com minha mulher para a nossa casa. Entrei no carro e escolhi a luz do painel como companheiro e com ela dividi o silêncio até o final da viagem. Dentro da casa, fiquei curioso. Eu ajudei a decorar isto? Era terrível, de extremo mau gosto. A mulher que me cercava começava a me dar naúseas. Tudo me dava vontade de fugir. Por dentro me sentia uma panela de pressão a ponto de estourar. Sentei. Respirei. Pedi uma toalha e entrei no banho. Quando saí, encontrei a mulher nua me esperando na cama.

Ela era bonita, formosa. Mas deus, eu não queria nada. Eu não a conhecia! Pedi a ela que por favor me deixasse descansar. A menina entendeu o recado e se vestiu. Doeu mais uma vez. Eu sabia que a estava magoando. Deitei e fui informado de que estava no lado errado da cama. Sutil vingança. Rolei. Tentei dormir, mas meu cérebro preferiu pensar em uma maneira de sair dali e o mais rápido possível. Assim que minha mulher adormeceu, levantei, me vesti e saí de casa. No corredor, vi fotos nossas. Pareceu que eu era realmente feliz. Mas aquela decoração, eu não faria absolutamente.

Finalmente consegui ir embora.

Um comentário:

Luís.G disse...

"Quando saí do elevador, eu era uma noiva." = GÊNIO!