segunda-feira, 19 de abril de 2010

Indias do Além Mar

No dia 26 de abril de 2015 eu morri. Mas foi uma morte espetacular. Me lembro bem do momento, dos movimentos, das faces, das contrações. Encontrei o meu fim, dando de cara com meu começo; já explico.

Era uma quarta-feira e como faço todas as quartas, terminei meu expediente e fui tomar minha cerveja no bar do Chico que fica na esquina lá de casa. O botequim era como meu segundo lar. Ali, entrava tirando a gravata, desabotoando a camisa, xingando um e outro carinhosamente como quem diz boa tarde.

Como sempre, sentei-me bem em frente aos risoles de camarão e que fique claro: os de camarão. (Em frente aos risoles de palmito - identificados por uma bolinha de massa por cima - sentava-se o Freitas, que só bebia água). Bom, em frente aos risoles de camarão, pedi uma cerveja, pão velho, azeite e sal e com esses ingredientes as horas passavam rápido; comendo, bebendo e dando pitaco nas conversas dos outros.

Tudo ia bem naquela dia, o calor dava lugar a uma brisa leve, o Fluminense ganhava de 2 a 0 do Cabofriense e minha mulher não tinha me ligado ainda. Entre pensamentos soltos despertei do maravilhoso mundo dos altos com uma vontade espetacular de ir ao banheiro. Levantei do banquinho, tropecei no cachorro da dona Clotilde, cumprimentei um simpático bêbado, fiz careta para o seu Joaquim e seu charuto e entrei no cubículo, descarreguei meus excessos e voltei por onde tinha ido. Enquanto fechava a porta do banheiro a vi.

Minha mulher. Ela estava linda, como quando a conheci dez anos atrás. Estava com o rosto limpo, sem maquiagem, o que realçava seus traços indígenas; seus cabelos negros estavam soltos, selvagens. Usava um vestido amarelo dois dedos abaixo da dobra da bunda e uma sandália de palha, o que tornava o quadro uma pintura naturalista sem igual.O tempo parou e naqueles minutos, ou melhor, segundos, a vi me abraçando quando nos conhecemos, lembrei dos beijos enlouquecidos, dos apertos endiabrados, do tesão incontrolável de um passado enterrado.

E me lembrei disso tudo pq nela vi não só a beleza natural que sempre foi uma marca registrada. Além de todos os traços perfeitos, o corpo escultural, a luz sobrenaturtal, havia nela raiva; um desespero que vinha do fundo do estômago e que transfigurava toda aquela beleza em força pura, em energia cósmica, em pressão, em vibrações que por pouco não derrubaram os copos e garrafas que se equilibravam nas estantes do Chico.

Talvez não tenha desejado entender o que estava passando. A imagem daquela mulher perfeita, a energia genuinamente original, o peso daqueles olhos me puseram em um estado de recepção, de frigidez completa. Nenhum músculo meu se mexeu, fiquei parado, com as mãos baixas, respiração rápida e olhos fixos em uma lembrança que voltava, em uma memória que se tornava um momento presente de novo. Era como se estivesse em alfa, mas consciente e bastante acordado.

Enquanto percebia minha condição de estátua, ela avançou. E enquanto avançava, percebi que os risoles de camarão e de palmito tinham trocado de lugar, que minha cerveja era água e que o Freitas era uma mulher que só bebia cana, que o cachorro da dona Clotilde era um senhor de nome Evandro, que o simpático bêbado era meu filho, que seu Joaquim na verdade era um fiscal do ministério da saúde que analisava os charutos vendidos na casa. Quando me dei conta de tudo isso, o que para mim foi um terrível esforço, senti a pontada.

A faca entrou e estraçalhou meu velho estômago e subiu e rasgou e cortou a bisnaga com azeite e sal que não tinha mastigado direito. Senti a outra mão em minhas costas, apertando meu corpo contra a lâmina, senti o respirar nervoso no meu pescoço, senti o cheiro daqueles cabelos negros pelo quais me apaixonei dez anos atrás. Senti um monte de coisas que não podem ser descritas por palavras. Senti pânico, senti leveza, senti horror, senti uma tranquilidade imensa e senti saudades. Saudades do que havia esquecido. Como pude esquecer isso? Como?

Entre respirações aceleradas, batimentos cardíacos a ponto de desandar, suores, gritos, cabelos, peles, cheiros, encontrei os olhos dela e com os olhos vi que ela me perdoava. Entendi que naquele ato trágico não havia vingança, não havia ódio e sim amor, o mais puro amor que pode existir, o amor que mata. Me fixei em seus olhos esperando o momento em que meu coração entraria em colapso, me fixei em seu corpo, em seu rosto e vi a morte, sensual como uma dançarina árabe, me recolhendo, me apertando, me usando, me cuspindo, me acariciando.

E ali, naquele microssegundo, cometi meu último ato de traição. A morte beijei, agarrei, rasguei, invadi e com ela vi estrelas. Gozei centenas de vezes e suei litros de amor e gritei palavras sujas em línguas que nunca conheci. Ali ganhei minha liberdade, ali decidi de uma vez por todas abandonar a índia por quem havia me apaixonado. Ali fizemos uma troca, ela me apresentou a minha amante definitiva e eu a presenteei com o meu desaparecimento.

Feliz e cansado, acendi um cigarro e passei a mão na cabeça da índia que ria sobre meu corpo.

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