domingo, 25 de abril de 2010

Corrida

Ele corria mais do que ninguém. Corria para acordar. Escovava os dentes ao mesmo tempo em que colocava as meias. Corria para ir ao trabalho. Perdeu as contas de quantas pessoas atropelou em seu caminho, de quantos bons dias deixou no ar e de quantos sorrisos deixou de perceber. Corria para fazer suas tarefas. Na verdade nem conseguia lembrar o que tinha feito no dia anterior. Corria para comer. Engasgou incontaveis vezes e foi salvo outras tantas por garçons e fregueses atentos que impediram uma morte prematura consequência de um caroço de azeitona. Corria para conhecer gente. Sua primeira namorada se apresentou quanto terminaram sua primeira noite de sexo, que durou, segundo o relógio dela, dois minutos. E corria também para se despedir. No caso da primeira namorada, esqueceu de dizer o próprio nome e não tinha a menor idéia do nome dela. Corria de si mesmo e não lembrava de como era seu rosto. Espelhos não tinha em casa. Correu tanto que chegou na frente, completamente sozinho. Quando parou, o fez aos 75 anos e não por vontade própria, mas obrigado por uma artrite que o impedia de levantar da cadeira. No primeiro dia que sentou em sua poltrona com um atestado médico nas mãos descobriu que não tinha agenda telefonica, percebeu que não conhecia ninguém, constatou que não havia mais um porquê. Tentou levantar e caiu de joelhos diante do aparelho de TV preto e branco. Morreu vagarosamente com pontadas cadenciadas que atingiam seu coração de hora em hora. Morreu lentamente achando que a morte também iria ser rápida.

Um comentário:

Camila Caringe disse...

Isso é um contra-senso, um roubo, não uma morte! E não podia Deus lhe fazer a última vontade? Que o levasse numa rajada de vento, antes de qualquer insinuação de despedida!

Crueldade.