terça-feira, 27 de abril de 2010

Enxurrada de Silêncio

Há sete dias ele parou de falar. Seus olhos não mostravam agonia nem medo. Amigos e familiares reunidos na sala ou no bar da esquina comentavam o acontecido. Ninguém entendia. Não houve nenhum acidente. Brigou com a ex-namorada, mas era comum, natural. Seus pais começaram a pensar que fosse um capricho vaidoso. Sua avó rezava e pedia a são benedito que o fizesse voltar a falar. Nada adiantava. Sua boca não se abria, nem para gemidos. Seu irmão num ato desesperado espetou-o com um alfinete. Cara de dor, mãos contraídas, mas nenhum som. Outra: não revidou. Olhou para o irmão com expressão rasgada de pena, teatral. Tinha-se levantado com o susto, mas sentou-se calmo, coçando levemente a coxa furada. Para os que assistiam não existia outra saída que não esperar.

Foram sete dias de tentativas desesperadas, uma eternidade de silêncio inconsolável e de muito barulho. Mais de cinqüenta pessoas passaram pela porta daquele quarto. Toda a pequena cidade se mobilizou. Incontáveis beijos e abraços, verdadeiros ou não, tocaram um corpo estático, onde só a expressão se alterava.

Lá pelas duas da manhã do sétimo dia, os irmãos que voltavam da bebedeira encontraram o dono do silêncio sentado no sofá. Assustados já que ele raras vezes tinha ficado de pé nesta última semana – começaram a gritar, soando o alarme. Em exatamente dois minutos aquele que não abria a boca estava cercado de mãos, beijos e olhares de interrogação.

Quando o silêncio mais uma vez tomou conta daquela família e fez por um milésimo de segundo que todos os presentes ficassem calados, a boca que havia se mantido em silêncio se abriu. Emitiu um silvo forte e agudo que levou as mãos de todos às orelhas. Um silêncio, mais profundo, jamais sentido nem pela avó que tinha mais de oitenta, seguiu o ensurdecedor barulho. Era uma pausa necessária, mostrando que algo iria vir e não seria uma coisa qualquer.

Iniciou-se então uma narrativa, com ritmo rápido quase incompreensível. Com silabas atropeladas, toda a história do mundo foi contada desde sua criação até o seu fim, não tão próximo, mas já com data marcada. O mundo foi desconstruído e reconstruído, todos os conceitos foram explicados e as grandes perguntas foram respondidas.

Depois de uma enxurrada de palavras e revelações, o silêncio voltou como uma corrente, invadindo com violência o corpo daquele que ousou falar tudo aquilo. Rompeu seu coração, rasgou seu pulmão, fazendo o sangue encher sua boca. Seu corpo caiu inerte, desta vez sem nenhuma expressão, e ficou no chão sozinho na solidão dos recém mortos.

Sua família não ousou nenhum movimento por muito tempo, talvez três dias. Ficaram estáticos sem se olharem, talvez por vergonha de suas vidas sem propósito, talvez esperando que alguém se abaixasse para confirmar a morte do garoto, que com tanto sangue e nenhum movimento não precisava ser confirmada. As campainhas e os telefones insistentes não interferiram naquele interminável momento de reflexão.

Por muito tempo, nada se soube daquela estranha família que um dia experimentou o silêncio. O que restava eram lendas que percorriam a cidade. O jardineiro da paróquia disse que o pai foi morar numa ilha deserta com a mãe reatando um relacionamento que já estava enterrado. O dono do açougue afirma que o irmão mais velho morreu na Antártica defendendo as focas dos caçadores. Os meninos do porto dizem ter ouvidos histórias de uma avó que vive de contar histórias, e a TV, outro dia, mostrou que o irmão mais novo estava correndo o mundo literalmente. As câmeras pegaram o menino correndo na Nigéria, décimo quinto país que visitava. Atrás dele, uma multidão sorridente e sem roupas seguia seus passos.

2 comentários:

Eduardo C. disse...

Muito bom ver o dado de dobre voltando a ativa. Texto muito bacana Bruninho. Vlw

Camila Caringe disse...

Havia um algo aqui que rompeu aquele silêncio profundo antes que ele mesmo o fizesse.

...Meu coração.