sábado, 23 de outubro de 2010

O vinho e a morte

A mulher das mãos falantes foi almoçar na casa de uns amigos franceses nos arredores de Paris. A casa branca era pequena, mas formosa. No grande jardim de flores amarelas, a família montou uma longa mesa, cercada por oito cadeiras de palha. Entre garrafas de vinho da safra de 1968 e caramujos da terra, via-se uma esplêndida toalha branca de rendas da Ilha da Madeira. O sol agradável e o cheiro de jasmim completavam o cenário.

As roupas brancas e simples da família engoliram as cores e dobras das apresentadas pela turista convidada. Brasileira e colorida, a mulher das mãos falantes se esforçou para acompanhar o alvoroço que o vinho francês causava e, como era boa com a fala das mãos, acompanhou atentamente as mãos dos outros. Se comunicou, bebeu e até se arriscou com os caramujos afogados no melhor molho da culinária francesa.

No auge do encontro, quando nada era francês e nada português. Alguém da porta da cozinha gritou: "un mort". A família imediatamente se levantou da mesa com precisão, como num ato ensaiado, e desapareceu dentro da pequena casa. A convidada, paralisada, foi informada por um francês cambaleante: a família cuida dos cadáveres da vila. A qualquer momento o serviço pode ser solicitado e as pessoas desta casa têm de cumprir com suas obrigações. É pela França, finalizou derrubando um cálice de champagne.

Pela França, a estupefada turista terminou a garrafa e saiu pela direita, sem se despedir da família que dentro da sala maquiava o corpo de uma velha senhora.

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