quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Consideracoes a posteriori

Mais uma daquelas noites frias de Londres, sem fog, mas fria. Voltando pra casa, procurando um lugar para comprar o maldito ovo de páscoa da minha esposa, sem casacos o bastante para parar o vento, sem poderes para me tele-transportar para casa, com o maldito ovo já devidamente escondido.

A culpa foi minha é claro, ela comprou o meu chocolate ontem e eu esqueci completamente. Hoje, domingo de páscoa, a noite, não me restam muitas opções. Parei no primeiro indiano que me apareceu, só barras de chocolate, no segundo, balas de chocolate, no terceiro, cervejas. Fodam-se!

Antes de poder ver a esquina da minha casa, perdido no meio de tantas casas iguais, com seus tijolos iguais, com suas portas pretas iguais, vi uma nota de 50 pounds no chão. Pensei: não tenho um ovo, mas tenho mais 50 pounds na carteira; dos males, o melhor! Olhei para um lado, olhei para o outro; na duvida, olhei pro céu. Nada parecido com alguém que perdeu dinheiro no raio de 10 quilômetros.

Abaixei, peguei a nota, meus olhos logo viram uma segunda nota dois passos adiante. Rapidamente, refiz o procedimento. Direita, esquerda, acima; abaixei e a peguei. Que beleza, estaria rico, num golpe de sorte incrível. Mas meus olhos viram logo a terceira nota e a quarta e a quinta e a sexta. Comecei a rir, mas alguma coisa estava errada.

A rua estava vazia demais. Não havia nada, só algumas luzes, sem sons, sem vento – mas continuava frio. A trilha de lindas notas com a cara da rainha terminava dentro de uma cabine telefônica; claro, escura. Tentei enxergar alguma coisa, mas nada, só uma grande penumbra. Catei todas as notas e abri a porta da cabine.

Caído no chão, um homem branco, cerca de 40 anos, cabelos começando a grisalhar sob um chapéu típico britânico. Um grande sobretudo cobria o corpo de cidadão; uma gravata e um colete deixavam-se aparecer sobre a confusão de tecidos que se aninhavam naquele cubículo. Abaixo do seu braço direito, uma mala entreaberta recheada de dinheiro finalizava a trilha que começara alguns quilômetros atrás.

Sacudi o homem, mas não foi preciso muito esforço para que acordasse. Com o rosto bem barbeado, apenas uma barbicha bem cortada desenhava um queixo pontiagudo, os olhos cor de lama olharam-me enquanto a boca falou-me em inglês: “what do you want?” Seu bafo era horrível, há de se comentar, mas não era de álcool. Gaguejei no meu inglês macarrônico e fui interrompido: “fale em português, eu não me importo”.

- E perigoso ficar aqui com tanto dinheiro. O que houve?
- A mala e sua. Pegue-a!
- Não senhor, por favor. Quer ajuda para levantar?
- Ela já é sua...
- Não, não é...
- Então, me diga: o que você tem no bolso?
- Eu ia te devolver, ainda não sabia que era de alguém.
- Fique com a mala.
- Por favor, não insista...
- Vamos colocar as cartas na mesa...
- Pardon?
- O negocio é o seguinte: a mala é sua e, a partir de amanha, você terá todo o dinheiro do mundo, toda a fama possível, vivera um sonho inesquecível. Absolutamente, nada de ruim acontecera a você, nem a ninguém próximo. Tudo o que você puder desejar será seu a partir do momento em que abrir os olhos depois desta noite de sono.
- Pardon? Eu te conheço?
- É claro que conhece. Sempre estive perto de você; sempre rondei seus sonhos, sempre alimentei seus pesadelos. Gostava de ver seu rosto de pavor, quando acordava suado; ou seu sorriso, quando acordava melado. Sempre estive do seu lado; nas orgias, nos beijos e orgasmos clandestinos; nas suas palavras, quando destruía alguém; nos seus olhos, quando fulminava alguém mais fraco. Eu quase sou você, e você é um dos meus melhores. Te treinei, agora preciso de um contrato. Fique com a mala, tenha a vida que você sempre quis para você e para os seus e me de a sua alma.
- Alma?
- A troca é essa, tudo na vida, nada na morte. O único ruim que lhe adianto, isso você poderia ler na ultima linha do contrato, é que você terá a pior morte possível.
- Sorry, mas não acredito em alma...
- É, eu sei, e me orgulho disso, você negou o outro por muito tempo...
- É, mas se eu não acredito em deus, também não acredito em você...
- É, mas eu estou aqui...
- Mas eu continuo não acreditando...

Neste momento, um raio cruzou o céu londrino, e um trovão quase botou abaixo o céu mundo.

- Esta vendo? Ele esta puto com você...
- Ele quem, cara-palida?

Outro raio ainda mais luminoso, com um trovão mais estrondoso fez balançar as arvores e os prédios a minha volta.

- Querido mortal insolente, você não pode brigar com os dois...
- Mas não estou brigando com você, querido sete peles endinheirado...
- Você não entende, quando você não está comigo, esta contra mim...
- Pois bem, que assim seja, serei o primeiro mortal que terá como inimigo deus e o diabo...
- Esta achando engraçado?
- Não. Na verdade, não estou achando nada, mas posso reconsiderar...
- Que assim seja, repito-lhe a proposta que não voltarei a repetir: pegue a mala e tudo será seu.
- Repito-lhe: no, thanks.
- Você ainda vai poder falar inglês como ninguém, pense nisso!
- No, thank you very much.
- Ok, com esse sotaque e com sua escolha, só tenho uma coisa a lhe dizer: seus problemas começam amanha, quando você abrir seus olhos...

Virei as costas a cabine e ao homem louco que ali se encontrava, mas antes esvaziei meus bolsos e na duvida deixei com ele o que tinha na carteira também. Continuei caminhando, pensando no maldito ovo que ainda não tinha comprado e que tinha de acordar cedo na terça para trabalhar e que também não tinha muito dinheiro no banco e que meus pais estavam com problemas no Rio e, e, e, e...

Quase na esquina de casa, achei uma daquelas lojas de indianos aberta. Entrei e perguntei se tinham algum ovo de páscoa. O rapaz abaixa-se e em suas mãos um reluzente ovo de páscoa olhou para a minha carteira. Peco um segundo, vou ao caixa, pego dinheiro e faço-lhe a pergunta: quanto? Depois de querer esmurrar a cara do bendito indiano, compro o bendito ovo e vou, fumando meu cigarro da volta, de volta pra casa.

Abro a porta devagar para não acordar minha esposa. Encontro sobre a mesa da sala um ovo de páscoa e um bilhete. Leio-o, deixo o ovo que comprei e arranho alguma coisa no verso do tal bilhete. Tiro a roupa ainda na sala e entro no quarto escuro para encontrar com o amanha.

Ouço lá fora os pássaros cantando. Tento abraçar minha esposa, mas ela deve ter ido tomar banho. Resisto a abrir os olhos, não sei por que; acabo adormecendo de novo. Acordo com uns tapinhas no ombro; abro os olhos imediatamente e imediatamente vejo minha esposa sentada na cama com uns papeis na mão e uma mala fechada no chão. Ela me pergunta e na sua pergunta só há raiva: quem é Natalia?

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